Com o intuito de ampliar o panorama de investigações de procedimentos de criação em dança e das possibilidades de intercâmbio nos estudos de corpo e política, esta pesquisa pretende apresentar uma investigação que tem como alicerce o terror. Partindo do pressuposto de que é possível instigar no espectador de uma obra de dança percepções e sensações dos mais variados tipos, pretende-se, aqui, apresentar os materiais desenvolvidos em uma prática como pesquisa que buscam, durante a fruição, estimular, no espectador, sensações relacionadas ao medo, procurando apontar exemplos de narrativas que usam da alegoria[1] de situações políticas aterrorizantes para questionar episódios do terror na sociedade atual. Procura-se, também, fazer um levantamento de exemplos de obras artísticas que usaram/usam como fundamento os mecanismos que tenham relação com o gênero terror. De uma maneira objetiva, esta pesquisa utiliza a tríade Terror (gênero cinematográfico) - Dança - Terror de Estado, no sentido de tentar responder ou oferecer ramificações discursivas para a questão: Como gerar estados de corpo aterrorizantes no campo dança usando como alegoria o Terror de Estado? A hipótese é de que é possível desenvolver estados de corpo aterrorizantes em dança, usando como estímulo o campo referencial do Terror de Estado, aliado à compreensão dos artifícios cênicos usados por obras de várias modalidades artísticas - prioritariamente, o cinema, mas também a dança, o teatro e a performance.
No decorrer do processo de pesquisa houve uma adaptação de percurso devido ao lockdown instituído em decorrência da pandemia da corona vírus, o que antes estava sendo elaborado com intuito de ser compartilhado presencialmente em forma de um espetáculo de dança, foi repensado para dialogar com a linguagem audiovisual. Essas adaptações ao invés de serem um empecilho, corroboraram no sentido de propor diferentes possibilidades inventivas do diálogo entre o gênero cinematográfico do terror e a dança pensada para a câmera. Dessa maneira, uma série de aspectos técnicos referentes ao ofício do audiovisual também foram considerados como importantes propulsores criativos de elaborações cênicas e ajudaram a endossar as discussões sobre a produção de estados de corpo aterrorizantes na dança.
A escolha do tema de pesquisa está diretamente relacionada com minha trajetória de formação artística de ator e dançarino. O entrelace entre teatro, cinema e dança é a base que segue estimulando meus raciocínios artísticos e confluem nas experimentações que desenvolvi nos últimos anos. Danse Macabre (2016) foi a primeira performance na qual me debrucei sobre a possibilidade de instigar medo através da dança, e comecei a testar com diferentes plateias alguns dos artifícios cênicos pensados a partir da influência do cinema e unidos ao desenvolvimento de qualidades de movimento da dança Haka[2] da cultura Mãori. Em 2018, fui contemplado com o Edital de Experimentação Artística - PIBEXA e recebi o apoio da PROEXT - Pró Reitoria de Extensão da Universidade Federal da Bahia, para desenvolver o “Projeto Ameaça”. Este era composto por uma série de experimentações de cunho audiovisual, sonoro, cenográfico, coreográfico, performático, teatral e culminou na produção do espetáculo “Insânia Kamikaze”.
Minha inserção no Grupo de Pesquisa PET - Comunidades Populares[3], da Universidade Federal da Bahia (UFBA), durante o período de 2 anos (2018-2019), também impactou, de forma considerável, minha trajetória, pois estimulou o refinamento de um pensamento crítico engajado, voltando o meu olhar para as questões de racismo no Brasil que, por sua vez, estão, impreterivelmente, ligadas à questão do Terror de Estado. Nesse grupo, tutoreado pela Profª. Drª. Ana Luiza Pinheiro Flauzina[4], desenvolvemos uma série de trabalhos e pesquisas voltados para a questão de gênero e raça dentro e fora da Universidade Federal da Bahia, destacando-se nossas visitas ao sistema prisional Lemos Brito em Salvador, no período de um ano, nas quais era possível ver de perto os frutos da precariedade de assistência social às comunidades negras e populares de Salvador.
O grupo de pesquisa CORPOLUMEN foi, também, um importante alicerce que alimentou de múltiplas maneiras a minha vivência artística durante o Mestrado. Minha inserção nos encontros presenciais e virtuais proporcionados pelo grupo, que se pautavam principalmente pelo estímulo da prática da dança partindo de princípios do contato improvisação, me estimulavam a seguir explorando as potencialidades do meu corpo em movimento e a sua relação com a câmera e com a criação fílmica. A participação no processo de criação de artes gráficas, edição de vídeo, animações e diagramação de projetos do grupo trouxe-me a possibilidade de estar vivenciando, juntamente a outros artistas e pesquisadores, diálogos que se relacionavam à dança sob outras perspectivas e que me estimularam, também, a me profissionalizar e adquirir o domínio das ferramentas que envolvem uma produção audiovisual.
O intuito de desenvolver esta pesquisa partiu de dois interesses complementares. O primeiro diz respeito a uma necessidade de investigar o terror como uma estratégia política de controle e dominação. Essa necessidade adveio a partir da percepção dos vários exemplos no decorrer da história em que o uso exacerbado de violência foi cooptado como estratégia de manutenção de poder. A relevância deste estudo se tornou necessária a partir da constatação de uma nova onda exponencial de lideranças de cunho fascista conjugadas a ideologias racistas, machistas, homofóbicas, dentre outras, que corroboram para uma indústria de produção de medo.
 O segundo interesse é relativo ao campo dança: me instigava saber das recorrências de produção do gênero terror na dança. Afinal de contas, elas de fato existem? É possível, provocar o medo ou terror através da dança? Sim. Pois, não restam dúvidas de que corpos de dançarinos no decorrer da história já perpassaram pelos caminhos sinuosos e insólitos do terror, mesmo que de alguma maneira não tenham necessariamente se auto identificado ou sido cunhados como pertencentes a esse gênero.
O movimento expressionista alemão efusivo na década de 1920, por exemplo, apresentou uma nova forma de construção do corpo em movimento e foi de extrema importância para a produção de obras que trabalhavam com temas pouco explorados, até aquele momento. As obras da bailarina e coreógrafa Mary Wigman (1886-1973), fortemente influenciadas pelo contexto político-social da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), exprimiam o desespero e a revolta de suas vivências de terror na guerra, configurando-se em uma estética, por vezes, perturbadora. Obras, como A bruxa (1926), de Wigman, são alguns dos muitos exemplos dessa perspectiva.
 Passando pelo teatro, peças do Grand Guinol, na França, bombardeavam os olhos das plateias no fim do século XIX até o meio do século XX, com apresentações regadas de mutilações e muito sangue: o gore (terminologia que hoje é referente a obras de terror sanguinolentas) era o principal mecanismo usado para causar repúdio ou, até mesmo, desmaios nos espectadores. Obras do encenador e performer polonês Thadeuz Kantor (1915-1990) e seu teatro da morte, como também, no oriente, o surgimento do próprio Butôh, na década de 1950, são importantes referências do trabalho com o grotesco e o excêntrico ligadas ao estudo do movimento corporal.
Atualmente, alguns coreógrafos e bailarinos chamam atenção por desenvolverem projetos que tecem algumas relações com o gênero: Damien Jalet, belgo-francês, responsável por coreografar cenas do remake[5] do icônico filme de terror, Suspiria (2018)[6], dirigido pelo italiano Luca Guadagnino; a coreógrafa,Nina McNeely que, dentre os diversos trabalhos coreográficos desenvolvidos para clipes musicais que evocam aspectos místicos e ritualísticos, também coordenou a direção de movimento do filme de terror Climax, do diretor francês Gaspar Noé. Akram Khan, coreógrafo bangladeshiano e diretor da Akram Khan Company que explora potencialidades de imagens insólitas em diversos de seus espetáculos, como Giselle (1974) e Outwitting The Devil (2019); e o grupo belga Peeping Tom, dirigido pelos bailarinos Gabriela Carrizo (Argentina) e Franck Chartier (França) - o grupo desenvolve diversos trabalhos com influências do terror como gênero cinematográfico.  Ao longo desta Dissertação, apresentarei experimentos desenvolvidos por mim com articulação aos trabalhos de outros artistas cênicos que vão ao encontro dos caminhos sinuosos da monstruosidade e do terror.
Histórica e culturalmente, podemos dizer que há uma relação entre aquilo que consideramos assustador e o contexto do qual advém uma ameaça. Sendo assim, falar de corpos monstros ou aterrorizantes está diretamente conectado com circunstâncias culturais que contribuem para a significação ou transformação de um corpo. A partir de uma investigação bibliográfica e corporal, pretendo apresentar, ao longo dessa Dissertação, alguns exemplos de autores que ajudam a delinear o panorama da história do terror e do horror, tanto no âmbito da ficção quanto da realidade, e que servem, nesta pesquisa, de referência para criações artísticas. 
Ao pesquisar por procedimentos de criação em dança que possuam um caráter aterrorizante, deparo-me com uma lacuna de materiais escritos, registros fílmicos ou, até mesmo, pistas de possíveis processos criativos que tenham esse cunho. Sendo assim, é ainda mais complexo desenvolver uma pesquisa que tenha como objetivo gerar estados corporais aterrorizantes, se os indícios desse tipo de material teórico não são tão recorrentes. Dessa maneira, torna-se cada vez mais importante, para esta pesquisa, assumir a experimentação continuada de partituras corporais como um dos procedimentos que auxiliam na construção e levantamento de material, adjunto, obviamente, da revisão bibliográfica e da análise de obras artísticas que possuam alguma ligação com o tema.
Leva-se em conta que, nas abordagens de pesquisa com prática artística, a realidade é dinâmica e permeada pela experiência criativa que move nossas percepções e afetos, questionando preconceitos e juízos de valor através da experiência sensível (FERNANDES, 2013). A Prática como pesquisa é, então, o cursor que me auxilia na metodologia dessa investigação, dadas as especificidades do meu objeto de pesquisa e o contexto em que ele está inserido. No campo das pesquisas em arte, essa metodologia vai ao encontro da necessidade de reconhecer a importância dos processos de criações artísticas como fonte de conhecimento validada pelos mecanismos de avaliação acadêmicos. Para tanto, durante a escrita desta Dissertação, viso compartilhar os principais fundamentos na construção de movimentação organizados por mim, considerando-os como um importante alicerce de produção de conhecimento proposto pela minha investigação e fonte geradora desta escrita crítica e reflexiva que nasce da experiência artística processual, durante os anos de Mestrado.
Ainda sobre Prática como pesquisa, Fernandes argumenta que “A Arte do Movimento é o elemento-eixo da pesquisa, do modo de pesquisar os mais variados temas, não ape­nas um objeto de estudo a ser manipulado e controla­do através de metodologias que, em geral, separam prática e teoria, movimento corporal e escrita textual” (FERNANDES, 2020, p. 74). Apesar de ser esse o eixo metodológico principal, assumo, também, a ideia de desenvolver uma bricolagem metodológica, por considerar esse método pertinente para uma análise reflexiva das práticas que venho desenvolvendo em conjunção com os materiais teóricos que circundam o processo de pesquisa. Sendo assim, opto por elementos referentes à autoetnografia que, segundo Fortin, “se caracteriza por uma escrita do “eu” que permite o ir e vir entre a experiência pessoal e as dimensões culturais a fim de colocar em ressonância a parte interior e mais sensível de si” (FORTIN, 2009, p. 83). Tentando desvencilhar-me de possíveis narcisismos, nesse contexto, as experiências pessoais e culturais que viso compartilhar estão inseridas nesta pesquisa com o objetivo de fomentar, ampliar e situar algumas discussões que apresento no decorrer da Dissertação. Tanto as experiências que vivenciei em meus trabalhos no sistema prisional Lemos de Brito com o grupo PET- Comunidades Populares Urbanas como as minhas vivências nos espaços de ensaio e no grupo de pesquisa CORPOLUMEN: redes de estudos de corpo, imagem e criação em dança, onde compõem o leque de relatos que ajudam na constituição do material aqui apresentado.  Em diálogo com essas experiências apresentadas por mim, estão os autores que ajudam a constituir o escopo teórico da pesquisa.
Afinal de contas, o que pode ser considerado terror no campo das artes? Muitos autores utilizados nessa investigação vão transpassar, hora ou outra, por esse questionamento e tentar encontrar os principais fatores que apontam pistas para que uma obra seja categorizada dessa maneira. Conceitos como terror-arte, do filósofo especializado em filosofia da arte, Nöel Carroll (1947), ou Horrorismo, da professora de filosofia política da Università degli studi di Verona, Adriana Cavarero (1947), são algumas das referências apresentadas aqui que irão ajudar a delinear o caminho de conceitualização do termo nas artes.
Observo ser importante enfatizar que compreendo o terror, nessa pesquisa, como um termo geral que abarca múltiplas possibilidades de significação. Por se tratar de uma pesquisa que dialoga com universo cinematográfico e por entender que nesse contexto o termo utilizado no Brasil para se referir aos filmes que objetivam causar medo e suas variantes é o terror, busco servir-me do banquete pavoroso que esse termo oferece para, a partir dele, alinhavar as variadas discussões que dizem respeito aos seus parentes semânticos. Isso significa que muitas vezes utilizarei os termos, medo, pavor, angústia, insólito, tenebroso ou até mesmo monstruoso como diferentes possibilidades de correlação com o terror. O que não significa dizer que tais termos individualmente traduzam a mesma coisa, mas sim que fazem parte desse universo e da forma como ele se agencia.
Por esta pesquisa estar associada ao estudo do corpo e das questões políticas que permeiam esse estudo, quando relacionadas ao terror (monstruosidade, anormalidade, moralidade...), muitas são as possibilidades de ramificações discursivas que essa investigação poderia abarcar, tendo amplos campos de estudo fomentadores desses temas. Dessa maneira, seria possível questionar diversas normas ou padrões sociais que são estabelecidos de forma estigmatizada em diferentes contextos culturais. Assim como seria possível objetivar uma discussão sobre a quebra de muitos desses padrões, reconfigurando a ideia de monstruosidade e apresentando diferentes perspectivas de monstros que, não necessariamente, fossem regidas por uma lógica comum. No entanto, há aqui uma necessidade de mirar o funcionamento dessas lógicas quando associadas a contextos artísticos que têm como foco flertar com o terror e causar desconforto. Dessa maneira, fui guiado por obras artísticas e referenciais teóricos que levantassem a discussões que me auxiliassem a entender a lógica de funcionamento desse gênero nas artes e da sua potência de metaforizar questões sociais. Não objetivo, dessa maneira, eximir-me de pautar diversas questões sociais, apenas pretendo fazer um recorte que me auxilie logisticamente a investigar o as questões relativas ao Terror de estado no Brasil.
Para compreender melhor as epistemologias do terror como gênero e investigar os mecanismos estéticos de incitação do medo/terror, foi realizada uma revisão de literatura e análises de obras cinematográficas de terror. Para investigação de um panorama mais amplo e para o mapeamento das distintas formas de opressão que, no decorrer da história, foram geradoras do medo, as seguintes obras foram utilizadas: Medo líquido, Bauman[7] (2008) e Horrorismo, Cavarero (2009). A obra Filosofia do terror paradoxos do coração, de Carroll (1947), foi basilar no que tange um estudo mais aprofundado sobre os mecanismos de produção de terror por meio das obras de arte por intermédio do ícone do monstro. Foi consultada, também, a obra Pedagogia dos Monstros, organizada por Cohen, Jerome, James, Ian (2007), responsável por dar luz aos aspectos referentes a relação entre corpo e cultura.
Considerando o termo Terror de Estado, uma das primeiras aparições relevantes desse conceito na história que teve origem relacionada com a Guerra Suja (1976-1983), na Argentina, e, também conhecida como Processo de Reorganização Nacional, que foi um regime de ditadura militar caracterizado por inúmeros casos de torturas e assassinatos. O termo foi usado pela Comisión Argentina por los Derechos Humanos (CADHU), no ano de 1977, para designar o genocídio promovido pelo Estado naquela época com o intuito de coagir e controlar a população. No contexto desta pesquisa, o termo Terror de Estado é usado como referência que me direcionou a importantes autores que o utilizam para discorrer sobre exemplos de estruturas políticas de poder que constroem verdadeiros açougues com suas táticas de extermínio.
A perspectiva de Terror de Estado, na qual me debruço nesta pesquisa, está diretamente ligada ao genocídio da população negra no Brasil, compreendendo que existe uma série de procedimentos desenvolvidos com o objetivo de exterminar essa parcela da população, tais como a violência policial de cunho seletivo e racista, o sistema de encarceramento em massa, a falta de políticas públicas direcionadas como estratégia de reparação histórica pelos danos causados  na escravidão que se refletem até hoje, dentre outros que serão abordados adiante.
Para ajudar a compressão sobre o Terror de Estado, foi feita uma revisão bibliográfica e, por conseguinte, uma análise de seu funcionamento no contexto nacional, para que possam ser compreendidas as características específicas de seu agenciamento no Brasil. Alguns dos referenciais usados são: no que se refere a um tratamento mais refinado com a questão racial, foi consultado o livro Necropolítica, Mbembe[8] (2003); para argumentar sobre as questões específicas do Terror de Estado no Brasil e suas consequências, a obra Antinegritude (2016), escrita por vários autores e organizada pelos pesquisadores e sociólogos João Vargas e Osmundo Pinho (2016).
Considerando o fato de que, no campo acadêmico da dança ainda são poucas as indagações que vão ao encontro ao estudo do terror como gênero artístico, faz-se importante estruturar um conteúdo que analise parte desse universo sob a perspectiva do corpo. Dessa maneira, o primeiro capítulo procura apresentar os principais conceitos que fundamentam essa Dissertação e auxiliarão no delineamento do que se pretende aqui como corpus teórico do terror. A apresentação desses conceitos é de fundamental importância para que, nos capítulos posteriores, o(a) leitor(a) possa ter, à sua disposição, a perspectiva e o vocabulário de terror no qual me alicerço. Guiado pela noção de corpo político, fomentada por Safatle (2015), busco apresentar o raciocínio do medo como aspecto político central de coerção social e traçar paralelos dessa linha de pensamento com os aspectos referentes aos temos: horrismo, terror-arte e Terror de Estado.
O segundo capítulo alicerça-se na análise de obras cinematográficas como fonte de discussão dos mecanismos de produção de terror. Questiona, pois, como diferentes filmes constituíram formas de mecanismos cênicos aterrorizantes, e quais as principais pistas que eles podem oferecer em relação à elaboração de movimentos, sejam eles movimentos de câmera, corporais ou de atuação.  As obras serão o fio condutor responsável por apresentar as referências com o intuito de compreender quais são os artifícios usados por essa linguagem e como alguns movimentos artísticos e filosóficos contribuíram de forma significativa para perpetuar influências estéticas que hoje podem ser relacionadas ao terror.
Depois da contextualização e das análises feitas nos capítulos anteriores, será possível visualizar algumas das principais referências desse gênero no campo das artes, o que nos ajudará na segunda etapa da pesquisa que é a de reconhecimento dessa estrutura aterrorizante para a criação de propostas artísticas que trabalhem metáforas de temas da realidade. Considerando o que foi visto nos capítulos anteriores que o terror nas artes se utiliza de muitas referências da vida real para a construção de suas estruturas narrativas, nesta etapa da pesquisa pretendemos apresentar uma possível alegoria usada por mim no campo da experimentação para explorar possibilidades de mecanismos específicos para a dança no contexto brasileiro.
No capítulo três, apresento relatos sobre os principais procedimentos de criação usados por mim nos últimos processos artísticos que executei, abordando as estratégias usadas para metodificar a construção de partituras corporais e a influência que os aspectos cenográficos provocavam em tais criações. Primeiramente, atenho-me aos exercícios executados no processo de criação da performance Danse Macabre(2016) e analiso como, naquela época, já se delineavam pistas de procedimentos que flertavam com a necessidade de gerar alegorias referentes a questões político-sociais. Apresento um breve resumo dos últimos trabalhos que realizei, buscando tecer relações com o gênero terror e, por fim, atenho-me ao processo de criação do curta-metragem executado no último ano desta pesquisa de Mestrado, articulando uma relação com as influências do Terror de Estado nos aspectos de composição narrativa.
A análise da criação do curta-metragem será apresentada com o intuito de evidenciar o quanto o contato com a linguagem cinematográfica reverberou no contexto dos ensaios e da sistematização de criação de partituras corporais. Os exercícios herdados de outros processos criativos ainda estavam presentes, porém reconfigurados, de forma a fazerem parte de um fluxo de experimentações que tinha relação direta com o espaço onde eram desenvolvidas e com a câmera que os filmava.  O mote central desses relatos parte da ideia da criação de um compêndio (GUIMARÃES, 2012) que opera como um arsenal de material criativo explorado, posteriormente, em sets de filmagem, os quais foram pensados como ambiências em que os personagens do Terror de Estado habitariam.
Diferentemente da circunstância de escrita desta pesquisa, o termo compêndio é abordado por Guimarães (2012) relacionado a processos de criação em contextos de improvisação. A autora inspira-se nos zibaldoni livros de atores da Comédia dell’Arte que “continham anotações do repertório da personagem, das piadas, truques, de tudo aquilo que o ator houvesse experimentado em cena e que tivesse obtido boa recepção e sucesso junto ao público [...]” (GUIMARÃES, 2012, p. 141). As informações eram armazenadas e colocadas à prova ao longo da experiência do ator durante os anos de atuação. O termo, então, é usado por ela para se referir aos materiais que compõem um catálogo de repertórios e estratégias que vão sendo encontrados por um improvisador nos seus percursos de experimentação de uma determinada obra ou experimentação que estão sendo realizadas. Apesar de, nesta pesquisa, o uso do termo compêndio, não necessariamente, estar associado ao contexto do improviso, ele mantém a característica principal, apresentada por Guimarães, de se referir a um repertório criativo que vai sendo descoberto e colecionado no decorrer do processo de criação.
Essa estrutura de criação partiu da influência exercida pelas experiências vivenciadas por mim no grupo de pesquisa CORPOLUMEN e do contato que tive com os relatos de criação da Cia. de dança belga, Peepingtom, apresentados por uma das bailarinas do grupo Maria Carolina Vieira. Busco evidenciar como essas influências corroboraram para a estruturação das minhas criações em dança e de que maneira elas podem ajudar a endossar uma discussão sobre dança e terror.
Por fim evidencio a importância do fomento de discussões em dança que visibilizem alegorias insólitas e contribuam para uma desmistificação dos medos contemporâneos a partir da compreensão de seus mecanismos de funcionamento pela estetização artística.   
Penso ser importante relatar que, nesta Dissertação, o termo alegoria está sendo usado como uma figura de linguagem que propõe a virtualização de significados. Ou seja, quando se usa um conjunto de metáforas para comunicar além do âmbito da literalidade. No contexto das produções de dança, entendo uma alegoria como um compilado de ações que, ao invés de tentar imitar ou descrever uma situação de forma literal, procuram encontrar maneiras de comunicar a partir dos subtextos, das sugestões ou das oposições. De acordo com Carlos Ceia[9], uma alegoria é aquilo que representa uma coisa para dar a ideia de outra por meio de uma ilação moral (CEIA, 1998). Um dos exemplos mais conhecidos relacionados a esse termo é a Alegoria da Caverna de Platão (428/427 - 348/347 a.C.) em que o filósofo utiliza uma parábola como estratégia pedagógica para elucidar a sua teoria sobre o conhecimento da verdade.
O conceito de metáfora está diretamente atrelado ao de alegoria, sendo que o primeiro considera apenas termos isolados, já o segundo amplia-se a expressões ou textos inteiros (CEIA, 1998). Dessa forma, pode-se compreender a alegoria como um sistema que abarca um conjunto de metáforas. Ambos os termos me são muito caros, pois constato que estão intrinsicamente ligados ao modus operandi de significação dos corpos de monstros em filmes de terror, como veremos no decorrer desta pesquisa, esses corpos são utilizados periodicamente para alegorizar ou metaforizar determinadas questões sociais.
A utilização de metáforas, no contexto do estudo do corpo, é discutida pela pesquisadora em dança, Lenira Peral Rengel (2015), em alguns de seus trabalhos. A autora nos ajuda a perceber as possibilidades que esse termo propicia quando compreendido de forma corponectiva. A ideia de corponectividade apresenta-se como uma proposta de tradução para a palavra embodiment, na tentativa de encontrar uma solução semântica que não parta do pensamento dualístico corpo e mente (RENGEL, 2015). Tais pensamentos são encontrados em traduções como: corporificar, encarnar, incorporar, reunir num só corpo. Essas palavras sugerem que ainda há de haver uma conexão e ignoram a ideia de que a ação já está em curso. Segundo Rengel, “rejeitar a ideia que mente opera por princípios físicos, químicos e biológicos [...]é continuar a perpetrar noções dualísticas, sem nenhuma implicação com os processos que ocorrem com os corpos” (RENGEL, 2015, p. 39). A ideia de corponectividade busca, então, fugir da concepção de corpo como receptáculo ou um recipiente no qual são inseridas as informações e propõe o pensamento de uma forma integralizada.
Todas essas considerações são feitas pela autora, a partir dos diálogos tecidos por ela em relação às correntes de pensamento do filósofo cognitivo, Mark Johnson (1988), e do linguista cognitivo, George Lakoff (1941), de modo a enfatizar a importância das metáforas no contexto pedagógico. De acordo com ela, etimologicamente, a palavra metáfora é composta por “Met ou Meta: antepositivo grego, que expressa as ideias de comunidade, participação, mistura ou intermediação, sucessão (no tempo e no espaço), [...] Phora: pospositivo, também do grego, que significa ação de levar, carregar” (RENGEL, 2015, p. 119). O procedimento metafórico seria, portanto, “a comunidade permanente de conexões neurais sensóriomotorasinferentesabstratas que ocorre com/no corpo. É uma transversalidade no entre dos textos da carne que pensa. Entre que tem lugar no corpo que faz/aprende/ensina arte” (RENGEL, 2015, p. 119).
De acordo com a perspectiva apresentada acima, as metáforas constituem-se da relação indissociável entre corpo e mente, já que, para compreendê-las, é necessário que haja um intercâmbio sensório-motor que interpreta, corponectivamente, esse conceito. Não se trata apenas de um ornamento da linguagem verbal, mas sim de um aparato cognitivo e, assim, não podemos nos eximir – professores de arte, estudantes, artistas –, da responsabilidade para com as metáforas que colocamos no mundo (RENGEL, 2015). A noção corponectiva de interpretação desse termo discutida por Rengel (2015) auxilia-me, então, a pensar em como estruturar um conjunto de estados corporais metafóricos, que agem de maneira simbiótica como alegoria de questões tocantes ao Terror de Estado no Brasil.
As discussões referentes às alegorias, às metáforas e à ideia de corponectividade foram alguns dos fatores que me ampararam na escolha da expressão estados corporais aterrorizantes. Essa expressão é utilizada nesta pesquisa quando me refiro aos aspectos e características de um corpo em movimento que indicam pistas sobre o que pode ser considerado monstruoso nele, levando em conta o contexto cultural que no qual está inserido.
Por fim, esta pesquisa visa ampliar as discussões de pensamento de corpo e política em dança e trazer outras possibilidades e interatividades em procedimentos artísticos na contemporaneidade. Trata-se, então, de uma alternativa de expansão de caminho para novas pesquisas que desejam versar sobre as monstruosidades que aterrorizam e constituem corpos coercitivos.
________________________________________________________________
[1] O termo alegoria é utilizado aqui sob a perspectiva que o caracteriza como um conjunto de metáforas, tal perspectiva será abordada logo adiante.
[2] Haka é uma dança típica da cultura nativa neozelandesa que tem como um de seus propósitos afrontar povos inimigos. Para tanto, enfatiza-se o uso de movimentos ritmados, expressões faciais marcantes e cantos de guerra associados aos movimentos.
[3] É um grupo multidisciplinar de pesquisa, ensino e extensão, que tem como objetivo desenvolver projetos em várias áreas de pesquisa que englobam questões de gênero e raça.
[4]Ana Luiza Pinheiro Flauzina é Prof.ª Drª adjunta da faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia.  Pesquisadora dos campos de gênero e raça, advogada, poetiza e diretora.
[5] Nova versão de uma obra.
[6] Suspira é uma refilmagem do filme homônimo de 1977, dirigido pelo italiano Dario Argento, importante nome do cinema de terror italiano e conhecido por suas produções no gênero de suspense policial denominado Giallo. O filme conta a história de uma bailarina que inicia seus estudos numa academia de dança comandada por um covil de bruxas.
[7] Zygmunt Bauman (1925 – 2017) foi um sociólogo e filósofo polonês.
[8] Joseph-Achille Mbembe, conhecido como Achille Mbembe (1957), é um filósofo, teórico político, historiador, intelectual e professor universitário camaronês.
[9]  Diretor do Instituto de Línguas da Universidade Nova de Lisboa.

You may also like

Back to Top