Não havia nada de acidental no que ocorreu aquela manhã. Nada incidental. Não era um assalto circunstancial, nem um acerto de contas pessoal. Era uma era imprimindo a si mesma naqueles que viviam nela. A História ao vivo. Se machucaram Velutha mais do que tencionavam, foi só porque qualquer parentesco, qualquer ligação entre eles e ele, qualquer implicação de que, pelo menos biologicamente, ele era um semelhante, tinha se rompido havia muito. Eles não estavam prendendo um homem, estavam exorcizando o medo. Não tinham nenhum instrumento para calibrar quanta pancada ele conseguia aguentar. Nenhum meio de avaliar quanto ou quão definitivamente o danificavam. Ao contrário do costumeiro arrebatamento dos batalhões religiosos enlouquecidos ou dos exércitos conquistadores, naquela manhã, no Coração das Trevas, o bando de Policiais Tocáveis agiu com economia, sem frenesi. Eficiência, não anarquia. Responsabilidade, não histeria. Eles não queriam arrancar os cabelos dele, nem queimá-lo vivo. Não cortaram fora seus genitais e enfiaram em sua boca. Não o estupraram. Nem lhe cortaram a cabeça. Afinal, não estavam combatendo uma epidemia. Estavam apenas vacinando uma comunidade contra um levante (ROY, 2008, p. 318).

Neste capítulo, pretendo desenvolver uma análise de cenas de produções fílmicas que me ajudam a compreender artifícios e truques usados no cinema para a produção do terror. Essa análise será feita com enfoque na perspectiva dos estados corporais de cada ameaça monstruosa. Busco entender como esses estados corporais estão, muitas vezes, atrelados a outros elementos dos recursos cinematográficos, tais como: sonoplastia, cenografia, iluminação, fotografia, movimentos de câmera, roteiro, que ajudam a compor as diferentes camadas de significações dos corpos monstros. Cada obra aqui abordada não será analisada de acordo com todos os fatores que a relacionam ao terror, mas sim de elementos específicos que me ajudam a compreender a tessitura que envolve o corpo das monstruosidades.
A escolha das obras desse capítulo deu-se por questões de interesses técnicos e pessoais. Penso que cada qual me auxiliou na compreensão de distintas potencialidades que os estados corporais aterrorizantes podem adquirir, principalmente quando associados aos demais elementos cenográficos. Não necessariamente cada um dos filmes apresentados nesse capítulo me causam medo, mas acredito que eles podem ser fontes instigantes de discussões relativas aos mecanismos de produção de atmosferas do terror. Em Ereaserhead (1977), atenho-me à questão da quebra do fluxo lógico de movimentação das atmosferas cênicas que podem vir a gerar desconforto. Em Tetsuo (1989), percebo a importância das questões de estrutura corporal e como podem auxiliar na construção de alegorias de questões políticas. No apanhado das Yureis, analiso como o diálogo corpo e câmera auxiliou na construção de estados corporais icônicos de criaturas de terror e como as heranças das narrativas da personagem interferem na sua estrutura física. E, por fim, em Clímax (2018), abordo as questões narrativas que evidenciam oposições e se manifestam de maneira física.
Se tratando da análise de obras que fazem parte da linguagem cinematográfica, foi importante perceber que, historicamente, o advento da possibilidade da captura de imagem, por meio, primeiramente, da fotografia e, posteriormente, da filmagem, proporcionou diferentes formas de dar-a-ver o corpo humano em movimento. Essas diferentes perspectivas do corpo, nunca anteriormente exploradas até o surgimento desses aparatos, contribuíram para um processo de reestruturação da experiência subjetiva da construção das imagens. Sobre essa discussão o Prof.º Dr. º do departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense, João Luiz Vieira aponta:
Tais tentativas surgem com o objetivo de congelar essas distrações e sensações evanescentes de prazer cinematográfico, através da identificação de momentos isolados da experiência “presente”. Há uma certa tensão contínua entre foco/distração, atenção dirigida/distração, estático/movimento, transitório/fixo, movimento/congelamento. O cinema cristaliza o efêmero, o transitório na sua essência, o movimento por meio da sucessão de fotos, fotogramas fixos, que já aparecem nas primeiras experiências de Eadweard Muybridge e Etienne-Jules Marey, com a decomposição do movimento. E também em Jean Epstein, quando elogia a transformação da descontinuidade original dos fotogramas isolados na continuidade temporal sintética da projeção, um instante evanescente de prazer cinematográfico (VIEIRA, ARTEPENSAMENTO, 2007).[1]


Essas afirmações são importantes, pois tratam da capacidade, primeiramente, da fotografia e, posteriormente, do cinema de subverter diferentes perspectivas de significação da movimentação corporal. Ou seja, ao possibilitar que o corpo humano fosse apresentado por intermédio de ângulos, velocidades, espacialidades, enquadramentos, ou, até mesmo, associações distintas por meio da mescla desses artifícios, novas poéticas começam a ser delineadas. Esse entendimento, a meu ver, é fulcral para analisarmos as possibilidades de movimentação que os monstros adquirem em relação à imagem filmada e aos tipos de estímulos que eles podem fazer emergir a partir do arsenal técnico cinematográfico, pois, muitas vezes, a construção da movimentação das ameaças em filmes de terror parte do aproveitamento dos aspectos técnicos específicos dessa linguagem.
 Dessa maneira, essa escrita busca levar em conta que uma ameaça de terror nunca é eficaz apenas por um único aspecto, seja ele de movimentação ou de atuação, mas, por todo um contexto de aspectos que, se, em outros gêneros, são meramente ‘‘técnicos’’, no terror, são dramaticamente assimilados e articulados na diegese[2] como cúmplices que amparam absolutamente sua função de ameaça (FIDELIS, 2019). Há, também, o intuito de perceber como são desenvolvidas algumas metáforas a partir desse jogo de estetização cênica. Partindo do pressuposto de que:
[...] o cinema do medo possa ser mais bem compreendido não só enquanto uma fábula social transparente, mas também como uma investigação sobre a natureza de nossa própria maneira convencional de olhar, ou seja, uma investigação que possa nos levar a ver e a entender o que está por baixo das superfícies de nós mesmos e de nosso mundo, de forma a se chegar a um estado diferente de consciência e ação (VIEIRA, 2007, ARTEPENSAMENTO).[3]


Apresentadas as motivações iniciais, proponho a seguinte pergunta. O que está por trás das monstruosidades no cinema?
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[2] Diegese diz respeito às características ficcionais da narrativa, ou seja, aquilo que faz parte do universo fictício proposto pelo filme.
[3] VIEIRA, João. A construção do medo no cinema. Disponível em <https://artepensamento.com.br/item/a-construcao-do-medo-no-cinema/>. Acesso em: 15 set 2020.



Cara pessoa leitora, fiz essa compilação de cenas para auxiliar na complementação de alguns exemplos dessa escrita. Sinta-se à vontade para assistir antes ou depois da leitura desse subcapítulo.

Iniciando a apresentação de produções que me instigam pensar o corpo em movimento no terror, trago, aqui, o filme Eraserhead (1977), do diretor norte americano David Lynch (1946). Aviso, de antemão, que essa obra é um tanto complexa de descrever, apesar de possuir uma premissa simples. Pode-se dizer que o filme apresenta os dilemas de um pai, Henry, que, após ser abandonado por sua companheira, Mary, vê-se tentando cuidar de seu bebê recém-nascido não humano (ver figura 15). A partir dessa premissa, vemos o concatenamento de imagens subjetivas que versam sobre as sensações desse protagonista que lida de maneira conturbada com a situação.


A despretensão em relação à linearidade narrativa e à lógica de ações possibilitam um instigante campo aberto para várias interpretações e questionamentos dos símbolos apresentados pelo diretor. Há, nesse filme, um aspecto soturno, que combina uma série de elementos, a priori, completamente díspares. Não por acaso, ele é identificado como uma das produções diretamente influenciadas pelo movimento Surrealista no cinema, que, segundo o Dr.º em Comunicação e Semiótica, Rogério Ferraraz, é um movimento onde:  
Num primeiro momento, influenciados pelas pesquisas de Sigmund Freud, os surrealistas buscaram em suas obras revelar os mistérios do inconsciente humano. Voltados a um processo de descobertas da subjetividade, procuraram expor as faces do eu individual. Encaravam os desejos humanos como determinantes na configuração do mundo. Eles sentiram, porém, a necessidade de situar esse subjetivismo no social, de transformar objetivamente o mundo. Assim, num segundo momento, encontraram nos estudos de Marx e Engels um campo vasto para se aprofundarem na questão política do indivíduo inserido em seu meio e superarem o subjetivismo anterior, buscando no materialismo as respostas para as questões sociais do eu (FERRARAZ, 1998, p. 32).

A relação do movimento surrealista associada a um estudo da subjetividade, como explanado no trecho acima, constitui uma série de produções artísticas que se alicerçam numa estilização associada, no primeiro momento, segundo o autor, a um universo onírico e fabuloso que não se pretende linear. Buscam, dessa forma, opor-se a uma ordem lógica coerente de ações e dialogar com as possibilidades de combinações sem sentido que apresentam um panorama relacionado ao fluxo de pensamento. No caso de Eraserhead (1977), percebem-se as marcas da estética surrealista, apresentadas com outras roupagens, com outras propostas, sob novos aspectos e novas concepções (FERRARAZ, 1998).
A monstruosidade, em Eraserhead (1977), poderia ser associada, se utilizarmos os princípios de Carroll (2000), a uma concepção metonímica[1] de terror, pois não está diretamente associada à imagem de um monstro que ameaça por sua estrutura física. O terror, nessa obra, a meu ver, dá-se pela distribuição de elementos técnicos e ações que confundem o espectador, contribuindo para a composição de uma atmosfera inquietante.
 O termo “inquietante”[2] foi estudado por Sigmund Freud (1856-1939) e, segundo ele, é um dos domínios que se relaciona ao que é terrível, “ao que desperta angústia e horror, (...) não é usado sempre num sentido bem determinado, de modo que geralmente equivale ao angustiante” (FREUD, 1919, p. 329). Em seus estudos, Freud defende a ideia de que o inquietante se apresenta como antítese de tudo aquilo que é confortável e tranquilo, mas observa que nem tudo aquilo que é inusitado é inquietante (ECCO, 2007). Ele associa o termo à ideia do retorno do recalcado[3], ou seja, a um trauma de infância, individual ou coletivo, que reemerge depois de anos consolidado, e, muitas vezes, está associado ao medo da castração.[4]
Compreender a influência de Freud no cinema desta época é um fator crucial para analisar a construção dos corpos em movimento trabalhada por Lynch no filme, pois a produção de sentido da diegese na obra é, em parte, dissociada de uma estrutura lógica realista, o que me faz constatar que essa alteração de lógica auxilia na produção estética do terror. Digo em parte, pois, mesmo que muitos dos acontecimentos remetam ao absurdo, ainda é possível identificar uma premissa de enredo na qual a história é ancorada. Se analisarmos visando observar a perspectiva das movimentações, podemos perceber o contraste entre gestos cotidianos inseridos no seu contexto de “normalidade” e aqueles que provêm de uma completa desconexão com a circunstância da cena (como será descrito ainda nesse capítulo). Nesse sentido, a associação do filme com outras obras surrealistas pode ser discutida:
Eraserhead é repleto de passagens que contrariam a lógica das coisas, com saltos no tempo e no espaço, que, na verdade, nem se apresentam como saltos, pois a própria lógica de tempo e espaço é modificada pelas ações e pelas personagens. Elas não pertencem a nenhum tempo e espaço demarcados, retomando as características já vistas em Um cão andaluz (FERRARAZ,1998, p. 96).

Esses saltos temporais, constituídos pelas ações e aos quais se refere Ferraraz (1998) podem possuir uma associação com movimentos de câmera, trocas de cenário, objetos, iluminação, dentre outros. Há, entretanto, uma relação específica entre a execução de movimentos corporais e a quebra de sentido na qual gostaria de me debruçar, apresentando alguns exemplos.
Os personagens, muitas vezes, engajam-se em pequenas ações completamente desconexas à circunstância gerada no filme. Gestos que, frequentemente, prolongam-se em um ciclo de repetição contínua e ajudam a gerar o estranhamento no espectador. Podemos citar o exemplo da cena em que Henry vai até a casa do pai de Mary visitar sua namorada. Na sala de visitas, há uma conversa entre Mary, sua mãe e Henry. Ali, sentados no sofá, num contexto em que as primeiras ações e diálogos ainda se ancoram em um sentido lógico, somos surpreendidos com um gesto inesperado de Mary e sua mãe. Mary começa a coçar, incessantemente, o seu joelho enquanto verbaliza um urro de agonia, como se seu ar estivesse rarefeito. No mesmo instante, sua mãe saca da mesa ao seu lado, uma escova de cabelo e começa a pentear a filha que se coça agonizando. Enquanto isso, Henry continua a responder as perguntas feitas pela mãe de Mary como se nada estivesse acontecendo. Num rompante, Mary cessa sua movimentação estranha para complementar uma fala de seu companheiro: - Henry é muito bom em impressão (referindo-se ao trabalho dele numa fábrica de impressões).
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[1] Ver capítulo 01.
[2] O termo original em alemão é Unheimlich. Em sua obra, Freud aponta a dificuldade de encontrar um termo, tanto em alemão quanto em outros idiomas, que abarque todas as ideias expostas por ele. Utilizo, aqui, a tradução em português feita por Paulo Cezar de Souza, (1955), que substitui Unheimlich pelo termo Inquietante. Penso ser importante expor que, em 2019, foi publicada uma nova tradução no Brasil, pela editora Autêntica, que substitui Unheimlich por Infamiliar e que, antes, havia uma tradução de Braulio Tavares (1950), que utiliza o termo Estranho.
[3] É um termo da psicanálise que se refere a um mecanismo da consciência em que um trauma recalcado (esquecido pela consciência) emerge outra vez.
[4] Uma das primeiras teorias psicanalíticas de Freud (1856-1939) que se refere ao medo inconsciente da perda do pênis que se desenvolve durante o estágio de desenvolvimento sexual e pode durar toda a vida.
Outro exemplo de ação deslocada de sentido pode ser visto na cena em que Mary parte da casa de Henry. Antes de sair, ela posiciona seu braço debaixo da cama e começa a fazer uma ação incessante de puxar algo enquanto encara, fixamente, o companheiro que está deitado na cama. Esse gesto se prolonga num aumento crescente de engajamento enquanto a cama balança. Até que, por fim, depois de muitas repetições, Mary tira uma mala debaixo da cama. Podemos citar, também, outro momento do filme quando uma personagem onírica de bochechas desformes (ver figura 17) dança entusiasmada e sorridente com passadas curtas e lentas de um lado para o outro, em um palco de cabaré, enquanto caem pedaços de um organismo estranho e pegajoso do teto. O contraste entre o riso do personagem com a estranheza da situação quebra com a lógica dos sentidos da circunstância e, outra vez, corrobora para o estranhamento da situação.
Penso que essas e outras cenas do filme me ajudam a compreender como gestos simples e pontuais podem ser capazes de gerar aflição ou desconforto naqueles que os contemplam se esses de deslocam de suas funcionalidades de execução. Para que esse efeito seja produzido, acredito que seja necessário existir uma mínima estrutura lógica que permita ao espectador se identificar com uma cena cotidiana e, logo depois, se surpreender por uma ação que não pertence àquele contexto. Diferente, por exemplo, de uma obra que assume a despretensão narrativa do começo ao fim com cenas desconexas em sequência, em Eraserhead somos pegos de surpresa, pois algumas cenas ancoram nossas percepções em aspectos do universo cotidiano, e, daí, surge, de repente, o estranhamento.
Importante perceber, também, o quanto a repetição dos movimentos ajuda na intensificação do estranhamento dessas figuras, como se a monstruosidade delas ousasse ocupar mais frames de gravação com gestos sem lógica. Há, aí, uma preciosa pista de como produzir uma inquietação por meio do movimento: gerar uma circunstância na qual opera algum nível de lógica de ações e comportamento, transgredir essa lógica com uma ação desconexa repetitiva experimentando diferentes intensidades até que ela se esgarce. Novamente, somos apresentados à ideia do grotesco como transgressor de uma norma vigente e da repetição como fator de construção de estranhamento:
No artigo “O estranho” (Das Unherimlich), publicado em 1919, Freud retoma o tema da repetição. Unherimlich relaciona-se com o que é assustador, com que provoca medo e horror: "O estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, a há muito familiar." O que caracteriza o estranho é, pois, essa proximidade e essa familiaridade aliadas ao oculto. Mas o absolutamente novo, o que jamais se deu na experiência, não pode ser temido. Só há Unherimlich se houver repetição. O estranho é algo que retorna, algo que se repete, mas que ao mesmo tempo se apresenta como diferente. O Unherimlich é uma repetição diferencial e não uma repetição do mesmo. Freud refere-se essa repetição a própria natureza das pulsões, "uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio do prazer" (ROZA, 1986, p. 250).

Como apresentado acima, há uma ligação entre a repetição e a forma como o inquietante (tratada na tradução acima como “o estranho”) opera. Há, também, uma relação de familiaridade que ajuda na construção dessa falta de sentido proveniente do inquietante, ou seja, é necessário que se estabeleça, primeiramente, um reconhecimento da lógica de uma estrutura para, posteriormente, identificá-la como estranha. É necessário que haja algo de familiar para que o infamiliar opere.
Pensando ainda sobre outros recursos usados no filme para causar essa sensação, lembro do uso de um material orgânico não identificável (ver figura 18) como símbolo recorrente apresentado pelo diretor, que pode propiciar tanto o estranhamento como a repulsa em quem assiste. Algo que se assemelha a um espermatozoide ou a um cordão umbilical sendo usado repetidas vezes como elemento coringa da obra e até como elemento base para a formação do bebê de Henry e Mary, que ajuda a reverberar a produção de estranhamento por não estar contextualizado.
Percebo que Eraserhead (1977) me proporcionou a possibilidade de pensar na descontextualização de movimentos cotidianos da sua circunstância comum como estratégia de elaboração narrativa para criação de partituras corporais, que tem como objetivo desorientar ou confundir os espectadores. A partir dessa estrutura, tenho desenvolvido algumas experimentações em que busco estabelecer cenas que se iniciam com uma sequência de ações cotidianas, e, subitamente, proponho uma espécie de parênteses gestuais que não tem nenhuma relação sequer com a estrutura proposta anteriormente, como por exemplo: tomar um café enquanto como biscoitos e, repentinamente, atirar minha cabeça sobre a mesa repetidas vezes até que meu rosto fique manchado de tinta vermelha e, num curto prazo de tempo, seguir tomando café como se nada estivesse acontecendo. Alguns desses exercícios serão descritos com mais detalhes e apresentação de material videográfico no quarto dessa Dissertação.  


Cara pessoa leitora, fiz essa compilação de cenas para auxiliar na complementação de alguns exemplos dessa escrita. Sinta-se à vontade para assistir antes ou depois da leitura desse subcapítulo.

Outro filme que utiliza elementos semelhantes aos de Eraserhead (1977) para a produção do terror é Tetsuo- o homem de ferro (1989), do diretor japonês Shinya Tsukamoto. Nessa obra, os artifícios cinematográficos de ruptura temporal, quebra de sentido, deslocamento de contexto sonoro são explorados de outras maneiras e ajudam a compreender como uma estrutura narrativa no cinema pode ser enfatizada pelas escolhas de filmagem, corroborando para a construção do corpo monstro e desenvolvendo metáforas que indicam questões sociopolíticas e culturais.

O filme conta a história de um homem, um salary man[1], que, ao passear de carro com sua namorada, atropela outro homem, um fetichista de metal[2]. Vendo as condições agonizantes da vítima, o casal decide acobertar o crime, atirando-a em um bosque e se aproveitando da situação macabra para transar em frente a ele. No entanto, dias depois do acontecimento, o salary man começa a notar que, de seu corpo, nascem estranhas peças de metal, e, a partir daí, vemos a transição constante do homem em um monstro de ferro, como se este estivesse contagiado com um vírus mutante. Logo descobrimos que esse vírus é uma corporificação do fetichista de metal que consome o homem até a sua completa transformação. No desfecho, vemos o embate desses dois personagens, o fetichista de metal e o salary man transformado em monstro. Tal embate finda na fusão dessas duas criaturas que se transformam em um único organismo metálico. O monstro fundido exclama, então, o discurso insurgente de um novo mundo de ferro prestes a ser conquistado por eles: “- Que sensação maravilhosa! Podemos transformar o mundo inteiro em metal! Podemos enferrujar o mundo na poeira do universo. Nosso amor pode destruir este mundo de merda! Vamos pegá-los” (TESUO ,1989).
O filme foi produzido num período, anos de 1990, em que o avanço tecnológico e o mercado financeiro sofriam mudanças frenéticas no Japão, principalmente em Tóquio, onde se desenvolve a narrativa. Tais mudanças influenciaram consideravelmente na rotina da população japonesa, levantando o questionamento da tecnologia como um real avanço evolutivo. A bolha econômica estava prestes a explodir e os mercados financeiro e imobiliário começavam a apresentar os sintomas de um colapso que, posteriormente, seria conhecido como a Década perdida[3].
Dentro desse panorama, há, em Tóquio, a categoria de trabalhadores regimentada desde a década de 20, conhecida como salary men, sobre a qual falamos na abertura dessa sessão, que são um modelo de trabalhadores importado do estilo de gestão empresarial do capitalismo norte americano. Essa classe representava não apenas uma forma de estruturação laboral, mas também um estilo de vida guiado pela noção de lealdade, consumo e heteronormatividade. Os salary men estão envolvidos em um jogo individualista das aparências "coletivistas". Suas aspirações por promoção laboral foram reforçadas por seu desejo de realizar um estilo de vida consumista "status de classe média” o que muitas vezes os conduziam ao Karoshi.[4] (SHIBATA, 2007, p. 55, tradução nossa). 
Não por acaso, os homens assalariados são figuras recorrentes nas obras de Tsukamoto; ele que durante um período da sua vida fez parte desse grupo de trabalhadores conta que conheceu os trens abarrotados em que eles viajam comprimidos e todas as frustrações que acumulam. Segundo ele, esses trabalhadores eram um símbolo da cidade de Tóquio (AGUILAR, 2007).
O uso dessas figuras no filme traz consigo uma série de questões que perpassam pelos corpos dessa classe trabalhadora. A relação de exigência de produtividade laboral no final da década 80 associava-se diretamente ao questionamento do uso das novas tecnologias como uma promessa de evolução. E, no caso de Tetsuo, essa dubiedade se manifesta por meio da alegoria da fusão monstruosa entre corpo humano e metal. As discussões de fusão entre corpo humano e matéria inorgânica já vinham tomando maior proporção algumas décadas antes. Os avanços nos estudos relativos a cirurgias plásticas, implantes de órgãos, próteses e afins endereçavam olhares diferenciados à estrutura corporal. Como aponta Corbin (2006):
A melhoria dos resultados graças ao doping, as perspectivas de modificação genética e doação, as intervenções biotecnológicas, tudo isso dá uma visão de um homem mutante, filho de suas próprias escolhas e de suas próprias técnicas, com aquela ambiguidade que não nos permite saber se ele é um homem desumano que é desumanizador ou um super-homem que supera a humanidade para levá-lo mais longe e mais alto e ter sucesso. Corações, rins, fígados e pulmões são transplantados. São implantadas artérias plásticas e próteses de quadril, as mãos cortadas são reposicionadas e a possibilidade de implantar partes do rosto é questionada. [...] O homem mecânico dos anos trinta parece estar de volta, mas submetido a outras formalidades e durante alguns momentos em que a norma do esporte ou da prática da eficiência desapareceu e apenas comanda a lógica do espetáculo ou as regras dos fantasmas individuais. O monstruoso se torna a manifestação desta perfeição sem norma (CORBIN et al., 2006, p.409, tradução nossa[5]).


É interessante notar que os questionamentos desse “novo olhar” trazem consigo uma relação de dubiedade entre expectativa do corpo “aperfeiçoado” ao mesmo tempo que versam sobre o a monstruosidade desse “aprimoramento”.  A perfeição sem norma, apontada no trecho acima e relacionada à ideia de monstro, muito tem a ver com o discurso insurgente desenvolvido em Tetsuo. Podemos inferir que, no filme, o aperfeiçoamento do corpo social está ligado ao avanço tecnológico apresentado, nesse caso, como um universo de metal. No entanto, a abordagem estética proposta pelo diretor alegoriza esse avanço de maneira a demonstrar suas deformidades. O monstro em Tetsuo é, então, a alegorizarão dos diversos dilemas que o enfrentamento homem/tecnologia pode gerar e o mais instigante é que essa discussão se dá através de embates corporais.
O corpo monstro em Tetsuo nos auxilia na compreensão de questões sociais, nascidas em uma Tóquio do fim da década de 80 que partilha de alguns anseios problematizados em outras partes do mundo.  Não obstante, o monstro pode ser considerado como a corporificação de um certo momento cultural. Ele incorpora – de modo bastante literal –; medo, desejo, ansiedade e fantasia (ataráxica ou incendiária), dando-lhes uma vida e uma estranha independência. O corpo monstruoso é pura cultura. (COHEN,2000).
E, nesse contexto, o avanço tecnológico se desenvolve associado a alguns movimentos que nos ajudam a compreender outras camadas sociais das problemáticas do corpo.  No caso do Japão, há uma forte repressão institucional guiada por padrões hegemônicos heteronormativos que proíbe a livre expressão individual e gera o crescimento de um movimento de contracultura questionador dessa repressão. Um dos exemplos seria o movimento cyberpunk, promotor de atitudes ligadas a sexo, drogas e violência. Sobre esse movimento Santaella dialoga com Kellner e discorre:
Segundo Kellner (2001, p. 383), o punk denota “a rispidez e a atitude dura da vida urbana em aspectos como o sexo, as drogas, a violência e a rebeldia contra o autoritarismo no modo de viver, na cultura pop e na moda”. Os dois termos juntos, ciber e punk, “referem-se ao casamento da subcultura high-tech com as culturas marginalizadas das ruas, ou à tecnoconsciência e à cultura que fundem tecnologia de ponta com a alteração dos sentidos, da mente e da vida presente nas subculturas boêmias (KELLNER apud SANTAELLA, 2007, p. 129).

O casamento da cultura high-tech com as culturas marginalizadas apontado por Santaella (2007) é um dos elementos que pode ser observado em vários aspectos no filme. O personagem fetichista de metal é apresentado ao espectador como um homem pobre, morador de um ambiente inóspito, provavelmente um ferro velho. Seu atropelamento e conversão em criatura concatenam uma série de ações de caráter violento e monstruoso que sugestionam uma espécie de revolta do fetichista em relação a sua condição social, ao mesmo tempo que convocam uma ode a um novo mundo metalizado. O vírus propagado por ele interage de maneira violenta com os corpos dos outros personagens e deixa transparecer sua relação de hostilidade para com o contexto ao seu redor.
 Outros aspectos que remetem ao movimento cyberpunk na obra são a trilha sonora que é produzida pelo compositor Chu Ishikawa (1966-2017) e mescla sonoridades de máquinas com instrumentos musicais e eletrônicos. E a caracterização de alguns personagens que também remetem a características visuais da cultura punk: cabelos espetados, maquiagem extravagante, figurinos chamativos, dentre outros.
Associado ao movimento cyberpunk, temos a corrente de pensamento pós-humanista que adquiria cada vez mais propulsão no final da década de 1980 e início dos anos 1990, tendo como uma de suas precursoras a pesquisadora feminista Donna Haraway que, com o seu Manifesto Ciborgue (1985), propunha uma série de questionamentos sobre os padrões hegemônicos de pensamento do corpo. Em relação ao seu trabalho, Santaella aponta:
[...] é proposta uma leitura progressista e feminista do mito do ciborgue. Com seu questionamento das dicotomias ocidentais entre mente/corpo, organismo/máquina, natureza/cultura, antinomias estas que também davam suporte ao patriarcado, a ideia do ciborgue penetrou intensamente na cultura, colocando em questão não apenas a relação do humano com a tecnologia, mas a própria ontologia do sujeito humano (SANTAELLA, 2007, p. 129).

Como se pode notar, muitos dos aspectos enfatizados por Santaella estão presentes em Tetsuo, de acordo com o que já foi abordado em alguns parágrafos acima. Trago essa citação no sentido de evidenciar algumas discussões de gênero e sexualidade que também são retratadas no filme e, de alguma maneira, perpassam as discussões propostas na corrente de pensamento pós-humanista. Na obra, os elementos de sexo e violência são, veementemente, correlacionados e apresentados de maneira a dialogar com as referências tecnológicas da época e enfatizados por aspectos de monstruosidade.  
De um lado, presenciamos a cena inicial do filme em que o casal transa no meio de uma floresta diante de um homem recématropelado por eles. Cena que é repetida sucessivas vezes por um aparelho de televisor, controlado sobrenaturalmente pelo fetichista de metal, com intuito de explicitar a obscenidade descomedida do casal.
Por outro lado, acompanhamos uma sequência de cenas em que a namorada do salary men o penetra pelo ânus com uma prótese metálica que sai de seu corpo (ver imagens 19 e 20). E outra em que os papéis são invertidos, e o salary men viola sua namorada com uma prótese em formato de broca que também cresce do seu corpo.  Tais elementos evocam uma série reflexões em relação à violência sexual, questões de gênero, machismo, e pós-humanismo, que, nessa obra, são potencializados pela lente do terror.
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[1] Salary men ou homem assalariado, era uma classe de trabalhadores japoneses de rendimento médio, que ocupavam cargos de baixo escalão em grandes empresas, enfrentavam condições de trabalho inóspitas, e uma extrema exploração de mão de obra.
[2]Pessoa que sente prazer em enfiar objetos metálicos no seu corpo.
[3] “A explosão da bolha econômica japonesa nos anos 90, que deu início ao que é chamado de ‘Década Perdida’ do Japão. Nas quase duas décadas de recessão em curso, houve uma inversão de papéis: desesperadamente necessitadas de reavivamento, as empresas japonesas começaram a tirar suas inspirações dos estilos de gestão americano” (MEIJDEN, 2015, p. 39, tradução nossa).
[4] Palavra japonesa que designa a morte por excesso de trabalho.
[5] La mejora de los resultados gracias al dopaje, las perspectivas de modificación genética y de donación, las intervenciones biotech, todo eso deja entrever la aparici6n de un hombre mutante, hijo de sus propias elecciones y de sus propias técnicas, con esa ambigüedad que no permite saber si se trata de un hombre inhumano par deshumanizaci6n o de un superhombre que sobrepasa la humanidad para llevarla mas lejos y mas alto y lo consigue. Se trasplantan corazones, riñones, hígados y pulmones. Se implantan arterias de plástico, prótesis de cadera, se recosen manos cortadas y se cuestiona la posibilidad de implantar partes del rostro.[…] El hombre mecánico de los años treinta parece estar de vuelta, pero bajo unas formas y durante unos tiempos en los que la norma de la eficacia deportiva o practica ha desaparecido y solo manda la lógica del espectáculo o del fantasma individual. Lo monstruoso se convierte en la manifestación de esta perfección sin norma (CORBIN et al., 2006, p. 409).
Tsukamoto desenvolve, então, um filme que usa o corpo monstro, fundido em material orgânico e sintético, como alegoria de uma efusão de acontecimentos, assim: brocas, pregos, fios de cobre, tubos de ventilação são mesclados com carne e osso para representar repressão, limites evolutivos, violência sexual e avanço tecnológico. É importante enfatizar que são múltiplas as vertentes de pensamento e movimentos culturais que culminam numa concepção pós-humanista e que esse movimento nasce de uma espécie de intercâmbio de dados:
 [...] expressões similares, tais como “autômata bioinformático”, “biomaquinal”, “pós-biológico”, foram aparecendo cada vez mais assiduamente em publicações de arte e cultura cibernéticas até que, em meados dos anos 1990, todas elas consolidaram-se no caldo da cibercultura emergente. O tema comum que as une encontra-se no hibridismo do humano com algo maquínico-informático, que estende o humano para além de si. Assim, a condição pós-humana diz respeito à natureza da virtualidade, genética, vida inorgânica, ciborgues, inteligência distribuída, incorporando biologia, engenharia e sistemas de informação. Por isso mesmo, os significados mais evidentes, que são costumeiramente associados à expressão “pós-humano”, unem-se às inquietações acerca do destino biônico do corpo humano Reivindicar a existência de corpos pós-humanos significa deslocar, tirar do lugar, as velhas identidades e orientações hierárquicas, patriarcais, centradas em valores masculinos (SANTAELLA, 2007, p. 129).

Como aponta Santaella, a reivindicação de um corpo pós-humano perpassa pelos caminhos de um deslocamento de sentido do corpo hegemônico. Essa característica envolve a narrativa do filme, transmutando o corpo do salary man, que é representado, nesse contexto, como um modelo de vida consumista heteronormativa e que será retirado da sua zona de conforto e convocado a tecer novas configurações de ser e estar enquanto corpo no mundo, nesse caso, utilizando a ideia de monstro de metal como metáfora.
Constato ser importante enfatizar que, ao apresentar as correntes de pensamento pós-humanista, objetivo contextualizar as vertentes de pensamento que abordavam as incertezas de cunho político-sociais relacionadas aos estudos do corpo naquela época e como alguns desses discursos se relacionam às abordagens estéticas desenvolvidas por Tsukamoto em Tetsuo. Sabe-se que, com o passar dos tempos, o pós-humanismo começa a abarcar uma seara cada vez maior de discussões. Sendo assim, optei por trazer os principais conceitos fomentadores para as discussões de monstruosidade e terror na obra analisada.
Ao discorrer sobre os conceitos das epistemologias relativas ao estudo dos monstros, alimento-me das discussões propostas por autores que estiveram atentos em compreender as monstruosidades que se relacionavam às questões sociais que permeavam seus contextos, bem como das correntes epistemológicas que ajudam a analisar quais os aspectos físicos de uma criatura, no contexto das obras de ficção, são capazes de gerar ameaça, estranhamento, nojo, repulsa ou terror.
Somando-se a esses elementos, é possível notar que os estados corporais desenvolvidos pelos atores possuem um interessante potencial grotesco. Corpos que se contorcem, movimentos cotidianos que se ressignificam por meio do uso de próteses, pausas e acelerações repentinas de ações e a junção desses elementos com marcadas expressões faciais são alguns dos fatores que me auxiliam a pensar em procedimentos de criação para movimentações aterrorizantes. Há, também, um trabalho rebuscado de edição de imagens que auxilia a desorientação do espectador e, por conseguinte levam ao estranhamento. Close-up’s [1]repentinos, cortes para ambientes aleatórios àquele em que se opera a ação e até mesmo o uso da técnica de stop-motion[2] são escolhas cinematográficas desenvolvidas focadas no terror.
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[1] Tomada em que a câmera enfatiza algum elemento de cena, promovendo o enquadramento e aproximação que evidencia apenas esse elemento.
[2] É uma técnica de gravação que dispõe uma sequência de fotografias para simular movimentos.
Levantam-se, então, as hipóteses de que as categorizações sugeridas por Carroll (1999) para a construção de uma figura monstruosa - fusão (mescla de dois ou mais seres que não pertencem ao mesmo nicho), massificação (capacidade que uma criatura possui de se multiplicar), magnificação (ampliação de membros da criatura com características ameaçadoras), ver figura 22 - ajudam a compreender anatomicamente como é arquitetado o corpo grotesco em Tetsuo. A produção de movimentos corporais combinada às sonoridades propostas também é capaz de construir, na obra, a sensação fantástica de que aquele corpo possui características sobre humanas, e, nesse caso, está relacionada diretamente a uma produção de sonoridades eletrônicas. ​​​​​​​
Analisar o filme sob a perspectiva do discurso pós-humanista pode no ajudar a compreender algumas questões referentes à transformação entre biológico e metálico e de como essa transformação pode se configurar em metáforas como as de violência sexual e falocêntrica, medo ou perturbação social advinda dos avanços tecnológicos, dentre outros.
Tetsuo auxiliou-me a pensar em experimentos de dança que estivessem ligados ao uso de aparatos cênicos que influenciassem a minha movimentação, ao mesmo tempo em que propunham uma deformação da minha estrutura física. A tentativa de dançar com máscaras, garras, facão ou até mesmo peças de roupas limitando a minha movimentação, e considerar que esses objetos faziam parte do meu corpo foram algumas estratégias que encontrei para associar o estudo de procedimentos de criação em dança ao estudo de elementos estéticos da monstruosidade. As figuras 24, 25 e 26 são exemplos de alguns desses meus experimentos.
Outro exercício que experimentei, inspirado pela análise de Tetsuo, foi o que chamo, até então, de deslocamentos sonoros, no qual busquei associar movimentações cotidianas sincronizadas a sons de objetos em movimento. Por exemplo: exploração de torção das articulações associadas a sons de cacos de vidro sendo esmagados; ou mastigar alimentos e associar esse movimento ao som de sapatos pisando em pedras. Esses jogos me fazem pensar nas potencialidades de sugestão de significações que os sons associados ao movimento podem gerar, dando, talvez, a impressão de que os ossos do meu corpo estão quebrando, por exemplo. O jogo com sonoridades tem me auxiliado, de muitas maneiras, a desenvolver algumas estratégias de produção de estados de corpos aterrorizantes que serão relatados com maior detalhe no último capítulo desta Dissertação.



Carapessoa leitora, selecionei esse vídeo para auxiliar na complementação de alguns exemplos dessa escrita, sinta-se à vontade para assistir antes ou depois da leitura desse subcapítulo.

Outras ameaças do universo de terror japonês que compõem a trama desta pesquisa e que me auxiliaram no processo de compreender as estratégias de produção de estados corporais monstruosos do cinema na dança são os espíritos vingativos de mulheres ultrajadas. Sendo que, nesta Dissertação, debruço-me em uma de suas representações a Sadako, garota que sai do poço no filme Ringu, de Hideo Nakata (1998). Essa personagem pode ser considerada um ícone das criaturas do terror, pois sua imagem é usada, ainda hoje, em diferentes contextos como exemplo de estruturação de um corpo aterrorizante feminino.  Para compreender a origem de sua movimentação e caracterização física, é importante considerar as matrizes da história dessa personagem que remetem ao universo mitológico japonês. Peço licença a(o) leitor(a), para apresentar um pequeno panorama do contexto das histórias dessa figura.

Muitas obras do J-horror contemporâneo são adaptações de contos orais mitológicos que circulam no universo imaginário japonês a milênios. Esse é o caso das histórias de mulheres vingativas. O primeiro registro escrito que se tem conhecimento com a aparição dessas figuras é, segundo a pesquisadora da área de comunicação, Sandra Sánchez Lopera (2016), de autoria de Nambodu Tsuruya IV. Nambodu foi o criador da obra de Kabuki[1] Tokaido Yotsuya Kaidan, escrita em 1825, a verdadeira mãe de todas as histórias de espíritos (LOPERA, 2016). Há algumas variações desse conto, e todas elas nos ajudam a decifrar um pouco da genética monstruosa das Yureis.
Em uma das versões, Tsuruya conta a história de Oiwa, uma mulher que foi envenenada por seu marido, um samurai, que comete essa atrocidade com o interesse de se casar com outra mulher de família mais rica para adquirir bens. Depois de cometer o assassinato, o samurai atira o corpo de Oiwa em um pântano. Passados meses, o espírito da mulher volta das profundezas do lago tenebroso com o objetivo de vingar a própria morte e atormentar o ex-marido.
Outra história é a de Okiku: uma criada assassinada por seu patrão depois de quebrar um prato de valor inestimável que ficava enfileirado na nona posição em uma das prateleiras da casa onde ela trabalhava. Há vertentes dessa história que dizem que o patrão atirou a criada em um poço, e outras que dizem que ela se suicidou por não aguentar as incessantes torturas feitas por ele como forma de punição pelo ato de ter quebrado o prato. Dizem, também, que o espírito dessa mulher aparecia para os viajantes desavisados que passavam perto do poço. O espírito contava de um a nove (número referente à posição do prato quebrado na prateleira) e, ao chegar no número nove, esbravejava um grito de horror para assustar suas vítimas.
Alguns elementos e símbolos caracterizam essas histórias e demarcam as estruturas nas quais se alicerçam os personagens: o elemento água, representado como túmulo indigno dos corpos de mulheres ultrajadas; a roupa branca, descrita nas narrações ou mostrada nas representações teatrais, faz referência às vestimentas que envolvem as pessoas enterradas em rituais fúnebres no Japão; o fato do assassinato sempre ser acometido por um homem; deformação no rosto dos espíritos (seja pelo efeito do veneno ou  como representação do carma carregado); cabelos largos que cobrem o rosto ou a maior parte dele.
As descrições dessas figuras já no Século XVIII apontavam pistas sobre como esses espíritos se apresentavam:
[...] Já em meados do século XVIII, talvez com a intenção de acentuar a natureza grotesca e aterrorizante de sua presença nas histórias das aparições, elas são descritas como sem pernas, com braços estendidos e mãos trêmulas, assim como fixando outras constantes como cabelos longos e escuros, inexpressividade, um rosto deformado - com uma pequena parte do rosto visível -, uma entidade lânguida e silenciosa (LOPERA apud OLIVARES, p. 29, 2016, tradução minha).[2]

Veremos, a seguir, que algumas das características citadas no trecho acima continuam fazendo parte da forma como esses espíritos foram concebidos em boa parte das produções cinematográficas.  Aproveito para levantar a hipótese de que o fato dessas figuras terem passado pelo processo de decomposição, pós-morte, em ambientes aquíferos, pode ter influenciado numa característica, muitas vezes, preservada ao materializar essas figuras no cinema: a movimentação lânguida ou pausada e a máscara de cabelo que cobre maior parte do rosto, como de alguém que acaba de sair lentamente de um lago.
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[1] O Kabuki origina-se no início do século XVII, como uma manifestação artística popular que tinha como intuito entreter os samurais. Essa manifestação altamente estilizada constitui-se pela mescla de dança, teatro, canto e interpretação. As obras são repletas de conflitos dramatúrgicos, coreografias de lutas de espadas, artes maciais e efeitos especiais.
[2] [...]ya a mediados del siglo XVIII, quizás con la intención de acentuar lo grotesco y aterrador de su presencia en las historias de aparecidos, se les describe sin piernas, con brazos extendidos y manos trémulas, además de fijar otras constantes como el pelo largo oscuro, la inexpresividad, el rostro deforme – con una leve parte de la faz visible –, una entidad lánguida y silenciosa (LOPERA apud OLIVARES, 2016, p. 29).

As três histórias apresentadas acima foram fundamentais para o desenvolvimento do enredo das primeiras exibições de filmes de terror japoneses, cujos anos iniciais se concentraram nos chamados kaidan eiga, histórias de fantasmas (LOPERA, 2016). Se analisarmos os aspectos da movimentação desde as produções cinematográficas mais antigas, podemos perceber que, normalmente, as Kaidan são representadas como figuras de movimentação pausada ou estáticas, que amedrontam, prioritariamente, por seus aspectos físicos e seu papel na construção narrativa, e não tanto por seu corpo em movimento. Em relação à movimentação desses personagens, advinda de manifestações do Kabuki, não pude encontrar, até agora, material que apresentasse alguma versão dessas histórias encenadas no contexto “teatral” para compreendermos até que ponto existiria a influência de uma produção de movimento advinda desse contexto, o que gera uma lacuna sobre essa influência.
 Desde a década de 30 até a década de 90, inúmeras foram as adaptações que remetiam aos contos e renovavam as suas estratégias cinematográficas de apresentar ao público japonês as ameaças dessas mulheres vingativas.
Os filmes de terror japoneses contemporâneos, com fortes raízes nas histórias tradicionais de fantasmas, caracterizaram-se por seu ritmo lento, pela ausência de sangue ou violência explícita (exceto em casos específicos como a trilogia All Night Long), pelo gosto pelo espiritual e pela imprevisibilidade do desenvolvimento de sua trama, sem esquecer personagens icônicos como o fantasma cabelo preto comprido que esconde seu rosto. Estes são os mesmos elementos que marcarão o J-Horror, uma onda de filmes de terror japoneses que, no final dos anos 90, se tornou um fenômeno internacional (LOPERA, 2016, p.22, tradução nossa[1]).

No entanto, a adaptação de maior reconhecimento que transpassou as fronteiras do Japão e aterrorizou os espectadores em diferentes partes do mundo foi Ringu, de Hideo Nakata (1998). Toda a genealogia apresentada nas páginas anteriores tinham como objetivo contextualizar para chegar na investigação de como Hideo Nakata se apropriou das histórias desses espíritos para compor cinematograficamente a imagem de Sadako, a yurei, do filme Ringu(1998). 
Convido a(o) leitor(a) para que imagine a seguinte cena: um professor de meia idade, sentado no escritório de sua casa, escreve uma carta enquanto bebe uma xícara de café quente. Ao seu lado, a fumaça do café dança livremente, desenhando símbolos sinuosos pelo ar. Há, nesse ambiente, uma atmosfera de paz e tranquilidade laboral. Até o momento em que chega aos ouvidos do professor o som de um objeto metálico sendo friccionado lentamente, como uma cadeira de balaço enferrujada que vai e volta. Ele se vira para sua diagonal traseira, e, para seu espanto, a televisão tinha ligado sozinha. Na tela, aparece a imagem pouco nítida e bruxuleante de um poço no meio de uma floresta.
Ele se assusta e, à medida em que tenta compreender o que está acontecendo, percebe que de dentro do poço saem mãos, mãos que convidam cotovelos pontiagudos e cotovelos que em alavanca impulsionam o corpo de uma entidade a sair pelas paredes do poço. A entidade não tem rosto, sua cabeça é completamente coberta de longos cabelos negros, sua pele extremamente branca só é reconhecida pelos braços e pernas que não estão cobertos com uma espécie de bata branca. A tela da televisão é repleta de ruídos imagéticos, daqueles que se reconhecem em fitas cassete mal gravadas. Entre esses ruídos está o corpo da entidade que se aproxima cada vez mais da câmera que a filma.  Seus passos são lentos, sua movimentação lânguida, há algo inquietante na forma como ela se move, seus movimentos não respeitam uma lógica linear, por vezes, um dos ombros se levanta abruptamente ou o cotovelo é impulsionado para baixo sem aparente motivo. 
O professor encara a imagem com espanto e se afasta da tela, na medida em que a figura se aproxima da câmera. Até chegar ao ponto em que a entidade subverte em outro nível lógico de acontecimentos. Seu corpo sai do aparelho televisor como se esse fosse um segundo poço... primeiramente, a cabeça e, depois, as mãos... os dedos da entidade são guiados até o chão da sala do professor e, lentamente, se arrastam como estivessem a escalar um prédio. Daí adiante, começa o jogo de perseguição entre uma criatura que se move entrecortadamente e um professor desesperado e cambaleante.
A cena descrita acima é uma das mais icônicas do cinema de terror japonês, inspiração para uma série de remakes e imitações que tentam reproduzir, o efeito alcançado pela primeira. Mas o que tornou o corpo dessa entidade um exemplo de sucesso aterrorizante?
Percebo que a primeira pista importante para responder essa pergunta está na máscara da personagem, o cabelo. Usar um elemento do próprio corpo para esconder a face é um artifício interessante, pois, além de tencionar a linha entre humano/sobrenatural, pode auxiliar na vantagem predatória da criatura, já que suas vítimas não possuem pistas para produzirem leituras faciais e calcularem as intensões de sua ameaça. Nesse sentido, Fidelis (2019) expõe sua experiência em utilizar a imagem de Sadako como inspiração para compor o personagem Medeia no teatro; e em relação ao cabelo da criatura aponta:
 A dramaticidade do seu cabelo como interdição ao rosto influenciou bastante minha atuação, sendo um elemento recorrente ao longo do exercício. Lançar olhares por entre esse máscara de cabelos permite operar uma vantagem predatória onde eu posso ver, sem ser totalmente visável. O ocultamento do rosto pode criar uma aura especulativa sobre a expressão facial da personagem, dissimulando um sorriso ou despistando para o caso de ela ser a fonte sonora. Evidente que toda uma atitude corporal precisa acompanhar esse procedimento para conferir densidade dramática e, criticamente, talvez eu o tenha empregado excessivamente ao longo do exercício. Os cabelos soltos sobre o rosto, as qualidades de deslocamento com acentuação dos cotovelos erguidos e a presença do balde em toda a trama como sendo um portal são influências da performance de Sadako (FIDELIS, 2019, p. 197).

Outra pista relativa à construção dos estados corporais de Sadako está relacionada à filmagem e edição de vídeo. Hideo Nekata relata, no making-of[2] do filme, que gravava as cenas com a movimentação invertida e depois editava, de modo que, se os passos tinham sido gravados com a atriz se aproximando do poço (de costas), a edição invertia a gravação e fazia com que fossem mostrados se afastando do poço e se aproximando da câmera. Somado a isso, havia também um controle de edição da velocidade de cada movimento, sendo que, em alguns segundos, acelerava-se e, em outros, ralentava-se, produzindo detalhes inusuais de velocidade. Esses fatores ajudam na quebra de sentido da lógica de movimentação da criatura, tornando mais difícil de identificar a partir de qual estrutura lógica ela opera.
            Por fim, um aspecto interessante é o uso do recurso cinematográfico do plano detalhe[3] para expor características da criatura que não seríamos capazes de identificar em um plano aberto e que contribuem para percebermos os seus aspectos grotescos. Como as unhas carcomidas (remetendo ao histórico da personagem que tentava escalar o poço antes de morrer afogada) e do olho arregalado entre as frestas de cabelo.

[1] El cine de terror japonés contemporáneo, con fuertes raíces en los relatos de fantasmas tradicionales, se ha caracterizado por su ritmo pausado, la ausencia de sangre o de violencia explícita (a excepción de casos puntuales como la trilogía All Night Long), el gusto por lo espiritual y la imprevisibilidad del desarrollo de su argumento, sin olvidar personajes icónicos como el fantasma de pelo largo y oscuro que oculta su rostro. Son estos mismos elementos los que marcarán el J-Horror, una oleada de cine de terror japonés que, a finales de los años noventa, se convirtió en un fenómeno internacional (LOPERA, 2016, p. 22).

[2] Dsiponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=wOf1N2XAqoI>. Acesso em: 22 jan. 2022.
[3] Plano de filmagem que aproxima a lente do objeto ao qual se quer enfatizar algum aspecto.
Os estados corporais de Sadako contribuíram imensamente na forma de pensar como criar mecanismos de movimentação que pudessem ter alguma relação com ameaças de filmes de terror. A partir da pista dada pelo diretor do filme de que a movimentação de Sadako se estabelece a partir de uma edição de vídeo, começo a filmar minha movimentação e explorar efeitos de aceleração ou inversão de imagem. Dessa maneira, tento compreender de que forma essa alteração na edição de vídeo agencia uma mudança na configuração de movimento no meu corpo e, posteriormente, tento reproduzi-la fisicamente até encontrar um estado de corpo que acredito que se assemelhe àquele encontrado por meio da edição. A partir desse experimento, começo a entender como o intercâmbio entre o estudo da linguagem cinematográfica associado ao estudo de composições em dança pode ser uma ferramenta exploração de pesquisa interessante para a criação corporal em dança. ​​​​​​​



Cara pessoa leitora, fiz essa compilação de cenas para auxiliar na complementação de alguns exemplos dessa escrita. Sinta-se à vontade para assistir antes ou depois da leitura desse subcapítulo.

Apresento, a seguir, uma descrição narrativa do filme Clímax (2018), do diretor Gaspar Noé. Clímax pode ser dividido em três partes. A primeira é constituída de breves trechos das gravações de uma entrevista feita com bailarinos que integram um grupo de dança, recém-formado, para participar de uma tournée. Nessa parte, recebemos informações importantes referentes às características e personalidades dos personagens. Na segunda parte, que se passa em um ginásio, vemos a coreografia ensaiada pela última vez antes da tournée e o início de uma festa de comemoração. Nesse momento, recebemos mais pistas sobre as personalidades dos indivíduos por meio dos seus corpos em movimento e dos diálogos. E, na terceira, instaura-se o caos, pois a bebida da festa foi batizada com LSD e a partir desse momento vemos os efeitos lisérgicos experimentados pelos bailarinos.​​​​​​​

A cena da coreografia inicial demonstra o esbanjamento do virtuosismo técnico e coreográfico de cada membro do grupo. Nela, a apresentação dos personagens se dá por meio de qualidades de movimento e de modos de dança, como vogue-dance[1], hells dance[2], freestyle[3] e wacking[4]. O controle das técnicas está associado a uma construção coreográfica repleta de entradas e saídas de bailarinos, cruzamentos, imagens geradas por aglomeração de pequenos grupos ou pela ênfase construída pelo coro em relação a um indivíduo que se movimenta sozinho. Em síntese, esse momento poderia ser definido como uma composição dos corpos de jovens dançarinos em seu ápice, a potência máxima do que seus corpos podem gerar em nível técnico de virtuosismo.
Em oposição à cena descrita acima, temos o segmento trágico do filme, composto por planos sequências de diversas ações nas quais o descontrole rege a circunstância em que estão inseridos os personagens. É a partir dessas cenas que o filme consegue desenvolver uma relação entre a execução de movimento e aspectos relativos ao terror.
As qualidades de movimento, que compõem o panorama de cenas referentes aos efeitos lisérgicos sofridos pelos personagens, muito têm a ver com o descontrole, se considerarmos como parâmetro as cenas iniciais do filme. Em oposição aos movimentos relacionados a técnicas específicas de dança – que trabalham com precisão, eixo, simetria e codificações específicas que estabelecem um padrão de movimentação corporal –, as movimentações dos corpos alucinados, são assimétricas, imprecisas, cambaleantes e desconexas. Não há como encaixá-las numa lógica coerente, e esse fator é um dos responsáveis, acredito, por gerar o estranhamento que está relacionado ao terror.
Essa é uma das mais recentes produções do diretor Gaspar Noé que pode ser considerada como parte da tendência cinematográfica, cunhada pelo crítico francês James Quandt (2004) como Novo extremismo francês. Quandt (2004) cria esse termo para abarcar as produções cinematográficas que começam a surgir no fim do século XX, na França, e que têm como objetivo transgredir os interditos sociais por meio de violência explicita. Segundo ele, o termo se refere ao cinema subitamente determinado a quebrar todos os tabus, a caminhar em rios de vísceras e espumas de esperma, a preencher cada moldura com carne, nobre ou nodosa; e a submetê-la a todo tipo de penetração, mutilação e impureza (QUANDT, 2004). Alguns diretores que trabalham com aspectos dessa tendência são Catherine Breillat, Marina de Van François Ozon, Gaspar Noé, Bruno Dumont, Lukacs Moodysson, Claire Denis, Leos Carax, entre outros.
Os filmes inseridos na vertente do Novo extremismo francês costumam abarcar temas relativos a aspectos socioculturais contemporâneos, como o individualismo, violência sexual e superficialidade das relações. Neles, pode ser observado o exagero da utilização do shock-cut: um recurso cinematográfico que ajuda a amplificar a exposição de violência na cena pelo corte repentino de uma cena cotidiana para uma chocante. Em relação a esse recurso, Fidelis (2019) aponta:
[...] o shock cut desponta como um singularizador da experiência terrorífica, uma vez que, mesmo que sua presença não seja necessariamente obrigatória para caracterizar um filme como pertencente ou em diálogo com esse gênero, ele evidencia uma atitude própria no tratamento estético da violência. Essa atitude, esse modo de dizer-filmar-fazer-ver permite perceber a peculiar relação do terror com a aniquilação, a mortalidade, a finitude, a dor e os sofrimentos humanos (FIDELIS, 2019, p. 115).

               Os sofrimentos e violências humanas em Clímax são apresentados aos espectadores numa escalada de acontecimentos agressivos. Distante da ideia de cortes repentinos, como apresentado no trecho acima, que chocam pela inserção de duas imagens opostas, constato que, nesse filme, o recurso do shock-cut pode ser encontrado não como estratégia de compilação de cenas, mas como um aspecto central da narrativa que delineia com objetividade duas situações opostas que são gravadas, em sua maioria, em planos sequências. O que procuro dizer é que as cenas chocantes da obra nem sempre aparecem de supetão na tela, por vezes, somos informados com antecedência da presença de uma imagem violenta através do som (gritos, ruídos) por exemplo, mas penso que parte da função do primeiro bloco de cenas do filme está em apresentar um panorama de virtuosismo para que, posteriormente, ele seja transgredido, gerando oposição.
A oposição em Clímax é um elemento central, ao meu ver, que se dilata no decorrer da obra e apresenta, por meio desses longos planos sequências gravados num mesmo ambiente, uma mudança de circunstância que altera a conduta das ações dos personagens. O que era virtuoso, prazeroso e festivo, torna-se obsceno, violador e monstruoso. Mesmo que não haja uma mudança abrupta dessas situações, penso que ainda assim o efeito impactante e transgressor das imagens pode ser efetivo, pois o shock-cut também pode ser composto por:
Aquilo que na realidade solicita um desvio dos olhos, recebe no terror a mirada. Essa atitude de olhar a górgona, de elaborar o que petrifica e horroriza enquanto imagem artística é o ponto fulcral do shock cut. Se continuarmos olhando para a tela, somos advertidos pelo som com a possibilidade de se deparar com algo perigoso ou lamentável. Os shock cuts são esses exercícios estilizados de desvelamento no espaço da tela, essa ousadia de enquadrar repentinamente as obras e vítimas da violência. Esse movimento da câmera ultrapassa o instinto de repulsa em prol da curiosidade, transgride os pudores da cultura, fotografa um instante de revelação chocante que, entre um quadro e outro, se interpõe como um corte que contém uma imagem desconcertante (FIDELIS, 2019, p. 116).

A situação apresentada acima pode ser exemplificada na obra, tanto em cenas de violência de um corpo em relação ao outro quanto em cenas de violência auto infligida, como quando acabamos de receber a informação de que uma das personagens está grávida e, minutos depois, a agridem com chutes na barriga por suspeitarem que ela é a responsável por batizar a bebida da festa. A ação de chutes sucessivos em uma pessoa pode ser por si agressiva, mas adquire um nível ainda maior de crueldade quando o espectador tem a informação de que a pessoa afligida guarda consigo outra vida.
Pensando ainda em alguns elementos que corroboram para enfatizar esse processo de oposição a partir da movimentação corporal, pode-se usar como exemplo um personagem que, do início ao fim da obra, constrói suas partituras de movimento com elementos de contorcionismo. Nesse personagem, os aspectos associados à monstruosidade podem estar relacionados à produção de movimentos de difícil execução que vão de encontro a imagens antianatômicas, em que sua movimentação adquire caráter cada vez mais grotesco quando associada a sons de ossos se deslocando e pela dilatação do tempo de execução de cada ação.
Há, também, uma importante pista para a construção de uma imagem bizarra ou angustiante que tem a ver com a produção de sons guturais juntamente com a execução do movimento. Gritos, urros de dor, palavras ininteligíveis ou a ânsia de produzir algum som que se detém na garganta são elementos presentes nos momentos trágicos do filme que penso corroborarem para uma composição grotesca.
Em uma entrevista[5] o diretor do filme alegou que ele e sua equipe compilaram um material de duas horas que continha diversas filmagens de pessoas sob efeito de drogas alucinógenas ou em condições de terminais psiquiátricos. Tal material, foi mostrado aos bailarinos para que eles pudessem usá-lo como inspiração para suas criações de movimento nos momentos da bad trip.
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[1] Vogue ou voguing é uma dança que se caracteriza por posições típicas de modelos com movimentos corporais definidos por linhas e poses. Originalmente popularizada na década de 1980, graças às festas chamadas Ballrooms ou Balls e clubes gays do centro dos Estados Unidos, ganhou fama quando foi apresentada pela cantora Madonna, em 1990, em canção de mesmo nome.
[2] É uma forma de dança que surgiu e evoluiu nos Estados Unidos e na Europa no final do século 20 e início do século 21. Tem o nome do estilo de sapato que se usa, já que uma de suas características distintivas é o uso de sapatos de salto alto durante a apresentação.
[3] Denominação referente aos momentos de improvisação em dança no contexto da cultura hip-hop.
[4] Waacking (também conhecido como whacking ou wacking) é uma forma de dança de rua criada nos clubes LGBTQIA+ de Los Angeles durante os anos 70. O estilo distingue-se, principalmente, por seus movimentos de braço rotativo, posando e enfatizando a expressividade.
[5] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=rYLY0brgq3Q>. Acesso em: 17 fev. 2022.
Ao notar que a qualidade de movimento dos bailarinos na circunstância de bad trip em Clímax se assemelhava em alguns aspectos à qualidade obtida por mim em um dos exercícios explorados no contexto da graduação, decidi revisitar algumas experiências que iam de encontro a essa qualidade. Pensando a partir da perspectiva do estudo de movimento, tenho desenvolvido experimentos que se relacionam aos desdobramentos de uma prática do Body Mind Centering-BMC[1], proposta pela Prof.ª Dr.ª Giselle Rodrigues em suas aulas de Interpretação teatral III, no período em que fui seu aluno na Universidade de Brasília. De acordo com Rodrigues, por meio do BMC, é possível observarmos como o movimento corporal realizado no espaço pode ser afetado, por exemplo, quando levamos nossa atenção para as células, os órgãos, ou fluidos, conscientizando-nos mais profundamente de sua forma, função, peso, textura, entre outros. (RODRIGUES, 2006). 
Os experimentos que tenho feito nesse sentido se relacionam a criação de imagens que partem de comandos absurdos referentes aos órgãos do meu corpo e a execução de movimentos que tentem habitar essas imagens. Por exemplo: meu pâncreas derrete languidamente até vazar e escorrer pelas minhas pernas; meus pulmões respiram na velocidade da luz até que explodem minha caixa torácica e flutuam pelo ar; meu intestino se movimenta lentamente formando um nó interno, como se fosse uma corda.
Explorar o habitar dessas imagens exige um engajamento corporal que tem me auxiliado a sair das minhas zonas de conforto, no que se refere à produção de movimento e a encontrar silhuetas, olhares, qualidades de movimento que buscam se aproximar de uma estrutura corporal grotesca ou estranha, que tenho buscado. Sem contar, é claro, que, normalmente, esses exercícios causam uma espécie de mal-estar momentâneo por promover alguns deslocamentos que embaralham, espremem, expandem, torcem os nossos órgãos de maneira inusual. Penso que, assim como em Clímax, se essas qualidades de movimento são inseridas em circunstâncias desconexas, elas podem adquirir um potencial grotesco ou monstruoso nas minhas criações.
Depois de apresentar as análises de aspectos dos quatro filmes que compõem esse capítulo, constato que eles me ajudam a compreender, em diferentes dimensões, alguns elementos que podem ser caros para a produção e execução de obras de terror. Essas discussões dizem respeito ao corpo das criaturas ou às ameaças que compõem essas obras. Foi possível entender que o uso de estados corporais discrepantes é um artifício que auxilia no jogo de oposição de imagens que exercem um papel narrativo de comparação, em que se gera um parâmetro daquilo que pode ser considerado “normal” e “anormal”, belo/feio, tranquilo/caótico, dentro das lógicas da diegese.
O som, como vimos, também pode auxiliar na construção da imagem dos corpos monstruosos, amplificando, multiplicando e sugerindo incômodos e capacidades de ameaça. Pode também confundir o espectador por meio da utilização de pistas falsas, quando inseridos fora de seu contexto usual.
A forma como algumas criaturas se movem também pode estar associada ao jogo de deslocamento de sentido, sendo assim, são pensadas estratégias cênicas que objetivam que aquele monstro exerça funções locomotoras transgressoras às logicas naturais de movimentação, tornando a sua ameaça ainda mais instigante.
Por fim, a compreensão de que todos os elementos citados acima auxiliam dentro de uma estrutura narrativa para a elaboração de alegorias corporais, em que todo o processo de transgressão, deformação e amplificação dessas figuras podem exercer um conjunto de metáforas de diferentes aspectos políticos, sociais, econômicos de uma determinada cultura.


[1] O BMC é um estudo desenvolvido pela norte-ametricana Bonnie Bainbridge Cohen, e tem como foco o desenvolvimento da consciência corporal profunda de cada sistema de nosso corpo, de modo a beneficiar nossa expressividade (RODRIGUES, 2006, p. 4).

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