Os gêmeos eram jovens demais para saber que aqueles eram apenas lacaios da História. Mandados para acertar as contas e cobrar as taxas daqueles que desrespeitam as leis. Impelidos por sentimentos que eram primais, mas, paradoxalmente, inteiramente impessoais. Sentimentos de desprezo nascidos de um medo incipiente, inidentificável: o medo que a civilização tem da natureza, o medo que os homens têm das mulheres, o medo que o poder tem da impotência. O impulso subliminar do homem de destruir aquilo que não pode nem dominar, nem deificar. Necessidades Masculinas (ROY, 2008, p. 318).
Se o turbilhão em constante movimento, que é o meu corpo, dança hoje se interpelando sobre o terror como proposta artística, é porque, no decorrer da minha vida, estive colecionando questionamentos que se relacionavam com o que me parecia amedrontador. Sendo o medo/terror um afeto político, como afirma o filósofo brasileiro Vladimir Safattle, em O circuito dos afetos (2015), acredito que, desde minha infância, esse afeto se apresentou para mim no campo das artes e da cultura, juntamente com a curiosidade e o interesse. Nascido de uma família trabalhadora, sem grandes recursos financeiros e que se apoiava na religião católica como possibilidade de criar sentido ou explicação para a vida, tive uma infância e adolescência refletidas sob esses atributos.
A memória mais remota que me salta a mente quando me interpelo em relação ao meu contato com o terror é relativa a um pesadelo. Aos 4 anos de idade, sonhei que cavava, afoitamente, uma vala profunda e me deparava com uma máscara vermelha, que, naquela época, eu interpretava como sendo a de Lúcifer, o anjo provocador de todos os males que tanto ouvia falar na igreja. Ao tocar naquele objeto com extremidades pontudas e densas marcações escuras insinuando a expressão de raiva, meu corpo era tomado por uma sensação física de estar frente a frente com a imagem de algo essencialmente diabólico. Essa sensação me é muito nítida, já que, por vezes, ainda me visita em alguns pesadelos transfigurada em diferentes criaturas tenebrosas.
A partir de então, acredito que comecei a levar atenção com um novo olhar para as diferentes coisas que me faziam revisitar essa sensação física de presenciar o mal, o que, obviamente, causava-me medo, mas não apenas isso. Sempre me pareceu instigante compreender de onde surgia essa perturbação, logo ao ouvir uma história, ao ver um filme ou ao passar por uma situação que me rememorava esse lugar. Tinha curiosidade em entender de onde advinha o que me levava a ter medo.
Lembro-me bem que, na minha infância, alguns dos momentos mais marcantes eram aqueles em que existia algum flerte com o medo do sobrenatural, principalmente por meio dos “causos de ouvi falar”. As histórias que meu avô, nascido em Arinos, no interior de Minas, contava e que ele afirmava serem verídicas, sem titubear, foram presenciadas por amigos conhecidos que ainda viviam na cidade: O lobisomem, ex-marido de dona Francisca; a mula sem cabeça que era, na verdade, o antigo padre da cidade vizinha que tinha se engraçado com uma mulher da vida; o sucupira que podia surpreender qualquer um que se atrevesse a caminhar no mato sozinho ou, ainda, o saci que, diversas vezes, eu presenciei, em forma de redemoinho, ou talvez não, já que, anos depois, minhas primas me afirmaram que se tratava, na verdade, do próprio belzebu. Para atestar tal afirmação, era necessário jogar sal no redemoinho, que, ali, o demônio se revelaria para mim. Nunca tive, no entanto, a audácia de realizar tal feito.
Noto que, não por acaso, o acesso do medo experimentado por mim na infância estava diretamente ligado à dicotomia do bem versus o mal. A matriz religiosa judaico-cristã que cerceava quase todos os âmbitos da minha herança familiar me apresentava, constantemente, nesse período da minha vida, uma narrativa central em que os personagens principais eram os legisladores das condutas de convivência que regiam a forma como eu deveria pensar e agir. O poder exercido pelo discurso moralizante de que, ao não respeitar as regras eu estaria compactuando com o vilão e susceptível a retaliações, seria a estrutura paradigmática construtora de muitos aspectos que mediam a minha relação com o medo.
Para compreendermos os mecanismos de constituição do terror, faz-se necessário delinear alguns aspectos estruturantes que regem a noção de moral, pois dizem respeito às origens daquilo que culturalmente utilizamos para estipular o que é aceitável e o que é repudiado. Por termos forte influência das matrizes judaico-cristãs na nossa cultura, acabamos por desenvolver uma noção de medo calcada em dicotomias que propagam uma doença, recomendam uma profilaxia e apresentam uma milagrosa medicina. Para melhor retratar essa analogia, valho-me da percepção de, Safatle, acerca de Freud[1]:
Ao menos segundo Freud, a visão religiosa de mundo teria por característica fundamental desativar a insegurança absoluta de tal violência através da constituição de figuras de autoridade marcadas por promessas de providência que seguem um modelo infantil próprio àquele que vigora na relação entre a criança e seus pais. Tal visão religiosa seria assim uma forma de funcionamento do poder que se sustenta na generalização social de modos de demandas ligadas à representação fantasmática da autoridade paterna. Promessa de amparo que, para ter força de mobilização, precisa se lembrar a todo momento dos riscos produzidos por um desamparo iminente, deve nos aprisionar nas sendas de tal iminência, nos fazendo sentir, ao mesmo tempo, a perdição e a redenção, a fraqueza e a força, o cuidado paterno e o inimigo que espreita. Ambivalência fundadora de processos de sujeição e dependência, já que me faz depender daquele que se alimenta do medo, que ele mesmo relembra, de poder perdê-lo. O que talvez explique por que Freud precisa afirmar que a religião (basicamente em sua matriz judaico-cristã) seria “a neurose obsessiva universal da humanidade (SAFATLE, 2015, p. 36).
Por meio de uma perspectiva psicanalítica, Safatle, referenciando Freud, ilustra um dos constructos básicos que envolvem os processos de afecção do medo. A ambivalência, gerada ao apresentar uma patologia e, concomitantemente, uma cura, pode ser relacionada ao processo explanado acima da relação de dependência paterna devido ao receio da eminência dos riscos do desamparo. Ou seja, ao saber que há uma possibilidade de adoecer, a medicina torna-se crucial para aqueles que querem viver. As regras (profilaxias) são ditadas no intuito de coagir aqueles que prezam pela própria vida, e o medo reina sendo o cerceador de todos esses mecanismos. Não seria essa uma ótima estratégia de controle?
Não obstante, as lendas populares, contos de fadas e histórias infantis estão cerceados por estruturas notadamente moralizantes. A “cerimônia” da contação das lendas folclóricas, apresentada a mim pelo meu avô na infância, nada mais é do que um dos primeiros processos ritualísticos dos mecanismos de elaboração moral do terror. Nesse caso, com o intuito de construir, no imaginário, a imagem daquilo que poderia ser perigoso ou gerar consequências ruins. As lendas urbanas geram, a partir dessa lógica, uma cartilha profiláxica dos limites que não devem ser ultrapassados por aqueles que prezam pela sua segurança.
Para além das histórias do folclore popular, minha geração ganhou de herança a explosão dos conteúdos televisivos/cinematográficos que nos apresentavam diferentes universos fantásticos e, muitas vezes, intrigantes e aterrorizantes. O quadro televisivo As histórias que o povo conta, do Programa do Ratinho[2], que encenava, em esquetes de 10 minutos, histórias de espíritos e monstros a partir do que eles diziam serem “relatos dos telespectadores”, acredito ter sido um dos primeiros responsáveis por me presentear com a terrível ideia de que os mortos ainda poderiam estar se movimentando entre nós.
O caso, no programa Linha Direta-Mistério[3], do tenebroso incêndio, no Edifício Joelma[4], foi cercado de enigmas, pois ninguém sabia como tinha surgido o fogo, mas todos enfatizavam o fato do lugar ainda ser mal-assombrado. O episódio dedicado ao acontecimento ficou marcado em minha mente quando apresentou o relato de um coveiro, do cemitério onde estavam enterrados os corpos de 13 pessoas mortas no incêndio e não identificadas. Ele dizia que, durante a noite, ouvia gritos que pareciam vir desses túmulos, relatando, também, que os gritos apenas cessavam quando ele testou jogar água em cima de cada túmulo. Verdade ou não, acho que, ainda hoje, não toparia passar uma noite por ali para verificar.
Ainda na infância, o primeiro material que, diariamente, era acompanhado por mim e que foi o responsável por me apresentar um leque de monstruosidades e seus respectivos universos foi o desenho animado Scooby-doo.[5] Em Scooby-doo, pude começar a entender, mesmo, talvez, inconscientemente, que, por traz dos monstros, sempre pode haver algo arquitetado, uma encenação e, muitas vezes, até algum tipo de crime. O que acontece é que, nessa animação, um grupo de adolescentes de ensino médio e um cachorro semifalante eram os responsáveis por investigar os casos de monstros e assombrações da sua cidade. Cada episódio mostrava uma criatura diferente que quase sempre era desmascarada ao final e revelava algum criminoso com interesse gatuno.
Por mais trivial que possa parecer a comparação, vejo, agora, que Scooby-doo possa ter sido, inconscientemente, uma das origens do meu interesse pela investigação do terror, por trabalhar com a ideia de que muitos dos nossos monstros são arquitetados por nossos algozes, com o intuito perverso de se beneficiar da nossa apreensão. De certa maneira, o desenho levanta a questão de que o medo pode ser uma resposta que damos para aquilo do qual a origem não sabemos explicar. E que uma solução para lidar com os monstros que cerceiam o nosso imaginário é investigar a sua constituição. O sociólogo e filósofo polonês, Zygmunt Bauman (1925), relaciona a sensação do medo à ignorância que nutrimos em reação a alguma ameaça. Tal definição nos ajuda a perceber como se organiza construção desse afeto no nosso psicológico:
O medo é mais assustador quando difuso, disperso, indistinto, desvinculado, desancorado, flutuante, sem endereço nem motivo claros; quando nos assombra sem que haja uma explicação visível, quando a ameaça que devemos temer pode ser vislumbrada em toda parte, mas em lugar algum se pode vê-la. "Medo" é o nome que damos a nossa incerteza: nossa ignorância da ameaça e do que deve ser feito - do que pode e do que não pode - para fazê-la parar ou enfrentá-la, se cessá-la estiver além do nosso alcance (BAUMAN, 2006, p. 8).
A relação entre o medo e a ignorância apresentada por Bauman é fundamental para compreendermos que uma importante ferramenta para desmistificação de nossas ameaças é o estudo e/ou reconhecimento da nossa fonte de ameaças. Não por acaso, acredito que esse simples
desenho animado tenha tido influência fundamental para que eu colocasse em questão aqueles que eram apresentados a mim como monstros e tentasse analisar a origem do seu funcionamento. Tal ferramenta se constituiu como um importante pilar nesta Dissertação, principalmente no que diz respeito à tentativa de compreender alguns mecanismos de funcionamento do Terror de Estado.
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[1]Sigmund Schlomo Freud(1856-1939), médico neurologista e psiquiatra criador da psicanálise.
[2] Programa de cunho popular do Sistema Brasileiro de Televisão-SBT, exibido desde a década de 90, que mistura entrevistas, apresentações de cantores, encenações e documentários.
[3] Programa de televisão da Rede Globo, exibido entre os anos de 1999 até 2007, que encenava casos de crimes violentos.
[4] A tragédia do Edifício Joelma aconteceu em fevereiro de 1974. Um incêndio tomou conta do prédio e 187 pessoas morreram. Após o ocorrido o prédio foi reformado e ainda hoje surgem boatos de que se trata de um edifício mau assombrado.
[5] Franquia de desenhos animados, criada pelos norte-americanos, Joe Ruby e Ken Spears, e atualmente produzida pela Warner Bros. Animation.
Já na adolescência, as pegadinhas do programa do Silvio Santos[1] eram sempre aquelas que juntavam toda a família na sala para rir dos medrosos que se desesperavam ao ver: um esqueleto em uma motocicleta indo buscar almas para levar ao inferno; a noiva cadáver que descia do céu de rapel e parecia que estava voando; o homem sem cabeça correndo atrás dos trabalhadores no ponto de ônibus ao lado do cemitério; os mortos se levantando do caixão fazendo as pessoas fugirem desesperadas da funerária quando não eram surpreendidas por uma porta trancada ou por uma escuridão repentina.
Nas pegadinhas, o terror adquiria uma face distinta, rir do sofrimento alheio era como expurgar de nós o medo das criaturas que também nos assombrariam. Nesse caso, surgia, em mim, um interesse pela forma como eram articulados os elementos cênicos para amedrontar as “vítimas”: os truques de espelho e iluminação, os robôs que se moviam por controle remotos, os mecanismos que moviam objetos e faziam corpos levitarem. Cada um desses artifícios elaborava uma situação propícia à ignorância e, por conseguinte, o medo ou o susto de alguns daqueles que não sabiam em que tipo situação se encontravam. Tudo isso me ajudava a compreender, cada vez mais, que o medo e o terror podem estar, também, embasados na incompreensão que temos em relação ao funcionamento de elementos ao nosso redor ou na surpresa de se deparar com algum artifício inesperado. Ao não saber que, na verdade, a noiva cadáver voadora era apenas a atriz Ruth Romcy deslizando por um rapel, a maioria das pessoas se aterrorizava comicamente com medo do inexplicável.
As pegadinhas proporcionam uma pista para abordarmos a diferenciação entre os conceitos de terror e horror apresentados pela filosofa italiana, Adriana Cavarero (1947), em seu livro Horrorismo (2009). A autora propõe, primeiramente, a diferenciação entre os termos por meio de uma análise etimológica, que nos dá pistas a respeito da reação dos indivíduos diante de uma situação amedrontadora. A palavra terror, caracterizada pela raiz “ter”, indicadora da ação de tremer, que deriva dos verbos gregos tremo ou treo, teria relação com o medo proporcionador de uma reação em seu estado físico e dinâmico. Ou seja, o terror seria aquele responsável por gerar, no indivíduo, diante de uma ameaça, reações derivadas do tremer ou fugir. De acordo com ela:
Entre as muitas formas de se concretizar o medo e, mais precisamente, o medo repentino do susto, o terror designa aquilo que age imediatamente sobre o corpo, fazendo-o tremer e empurrando-o para longe no ato de fugir. Os dois estados, tremer e fugir, estão conectados, mas não são necessariamente sequenciais. Seja no tremor ou no ato de fugir, o corpo é sacudido, vibra: como se o que treme de medo já estivesse no ato de fugir, ou o que foge de terror estivesse coerentemente dando lugar ao ato de tremer. O ponto decisivo consiste, em todo caso, na mobilidade, digamos, instintiva que diz respeito ao campo do terror (CAVARERO, 2009, p. 20, tradução minha).[2]
Em vista disso, podemos citar as pegadinhas como um exemplo vívido de encenações que versam sobre o aterrorizante pois, se nos valermos da proposição de Cavarero, incitam reações instintivas de proteção. Não obstante, as imagens mais marcantes de uma pegadinha de sucesso são aquelas em que as “vítimas” agem de maneiras mais afetadas, tropeçando, largando seus pertences e gritando devido ao desespero da tentativa de se afastar cada vez mais do objeto da sua ameaça. A resposta física dinâmica seria então, ao meu ver, o cerne do conceito aterrorizante de acordo com a autora.
Já o horror, segundo Cavarero, deriva, etimologicamente, do verbo latino, horreo, e, do grego, phirisso, que se refere à ideia de frio provocador da reação física da pele eriçada, do arrepio, ou do ato de petrificar-se, congelar. A gênese do horror, na sociedade ocidental, estaria, pois, encarnada na criatura mítica Medusa, que, com cabelos de serpente, dignos de repulsa, tinha o poder de petrificar todos aqueles que se atrevessem a olhá-la. Não há, então, a possibilidade de fugir ou tremer, já que o ato instintivo se detém. O horror seria, portanto, uma das faces do medo que não possibilita negociação à sua vítima.
No entanto, o exercício conceitual apresentado por Cavarero distancia-se do exemplo fictício do universo das pegadinhas e reivindica uma concepção política direcionada aos acontecimentos da ordem do real. Depois de presenciar o panorama de brutalidades da virada do fim do século XX, no qual uma série de ataques terroristas são midiatizados e discutidos, a autora propõe que o termo terrorismo visibiliza, em primeira instância, o provocador da agressão. Sendo assim, superpotencializa a sua imagem e faz com que ela adquira mais relevância do que a de suas vítimas. Nesse caso, o horrorismo seria uma terminologia que parte da perspectiva das vítimas afetadas que não tiveram a possibilidade de negociar com os agentes de sua ameaça. O termo, de alguma maneira, busca humanizar aqueles que foram ultrajados pela violência e pela sua conversão em dados estatísticos.
A importância de apresentar as diferenciações entre terror e horror, proposta por Cavarero, está no fato de reconhecer que o medo, como afecção, manifesta-se nos indivíduos por meio de diferentes aspectos. No sentido estético, ou seja, relacionado a uma situação de caráter artístico, tanto um como o outro corroboram de distintas maneiras para diferentes caminhos de fruição. O pesquisador e ator Yuri Fidelis (1995), em diálogo com Cavarero, ajuda a delinear as peculiaridades referentes a cada um dos termos, visibilizando a sua inserção em um contexto artístico:
Enquanto é possível e desejado fugir, o medo nos aterroriza. Quando a impotência diante da violência consumada só resta ser contemplada, o medo nos horroriza e o nojo assoma. Compreendo que a contemplação do horror tem a ver com a impotência diante da violência em andamento ou consumada, enquanto o terror joga com a sugestão, a possibilidade, a atmosfera de instauração e a aparição da ameaça. Horror é o banquete do predador-ameaça com a presa-vítima já capturada, terror é o que permeia todos os processos de espreita e captura. Medo seria a emoção que nos provoca terror e/ou o horror, portanto, insta a fugir e tentar procurar quaisquer meios de defesa ou insta a paralisar em perplexidade diante da ameaça ou do engajamento repulsivo do corpo (FIDELIS, 2018, p. 47).
O terror e o horror estariam, então, corroborando para a construção do universo concernente ao medo, sendo que um constrói uma atmosfera circunstancial e outro se apodera da circunstância dada. Em suma, ao tratar de ambos nesta pesquisa, tenho como alicerce os conceitos aqui apresentados e referenciados por Cavarero. No entanto, há, ainda, um importante autor que se dedicou a abordar o terror, considerando-o inserido especificamente contexto artístico, como veremos a seguir.
A consolidação do meu interesse pelo universo do terror como gênero artístico deu-se na minha adolescência. Coincidentemente, a geração da qual faço parte herdou, da cultura pop norte-americana, uma efusiva enxurrada de produções de filmes de terror que marcaram as décadas de 1960 a 1990. Por volta dos meus 15 anos, em 2010, já exista, ao meu dispor, uma série de ícones e franquias afamadas produzidas nos anos anteriores desde o nascimento do gênero terror.
Mesmo que eu ainda não conhecesse as fontes originárias de cada subgênero, já conhecia muitas obras que reproduziam clichês dos clássicos. Naquela época, já se podia listar a existência dos lendários filmes de Monstros da Universal, como: Frankenstein (1931), Drácula (1931), A múmia (1932), O Lobisomem (1941), O Monstro da Lagoa Negra (1954). Podem-se citar, também: os aclamados filmes do diretor Alfred Hitchcock, com sua suspensão de tensão intrigante, como Psicose (1960); os clássicos O Bebê de Rosemary (1968), O Iluminado (1980); os subgêneros de zumbis, de alienígenas, monstros gigantes, espíritos; os incansavelmente explorados Slashers[3], materializados nas franquias Halloween (1978), Sexta-feira 13 (1980), Freddy Krueger- Hora do Pesadelo (1984), Pânico (1996); os filmes de possessão demoníaca, inspirados em O Exorcista (1973); as produções remake do J-horror (cinema de terror japonês), como O chamado (2002) e O grito (2004).
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[1] Programa de auditório do Sistema Brasileiro de Televisão exibido desde 1963 e apresentado pelo dono da emissora Senor Abravanel (1930).
[2] De entre los muchos modos de llevarse a cabo el miedo y, más precisamente, el miedo repentino del susto, el terror designa lo que actúa de inmediato sobre el cuerpo, haciéndolo temblar y empujándolo a alejarse con la huida. Los dos estados, temblar y huir, están conectados pero no son necesariamente secuenciales. Sea en el temblor, sea en la huida, el cuerpo es sacudido, vibra: como si quien tiembla por el miedo estuviese ya en el acto de huir, o quien huye aterrorizado estuviese coherentemente dando paso al acto de temblar. El punto decisivo consiste, en cualquier caso, en la movilidad, digamos, instintivo que concierne al ámbito del terror (CAVARERO, 2009, p. 20).
[3] Subgênero do terror que nasce nos Estados Unidos em meados da década de 70. Inspirados nos filmes Giallo italianos, os Slashers são caracterizados por um enredo base onde um grupo de pessoas são perseguidas e assassinadas uma a um por um assassino em série ou criatura.
Os filmes gore, naquela época, ainda ressoavam as características de Jogos Mortais (2004). Além disso, as inúmeras obras, como Todo Mundo em Pânico (2000), satirizavam todos esses subgêneros mencionados acima e me ajudavam a entender melhor o funcionamento das estruturas de roteiro repetitivas do terror no cinema.
Os filmes mencionados acima são apenas uma pequena parte do majestoso contexto de produções de terror que chegavam até mim, direta ou indiretamente. Infelizmente, as obras do contexto nacional daquela época ainda não me chamavam tanta atenção, característica que, felizmente, mudou até a escrita desta Dissertação.
Havia um interesse que cultivei pelas figuras monstruosas que protagonizavam esses filmes. Não sei se por associação à imagem da máscara aterrorizante do meu sonho aos quatro anos de idade ou se pelo costume de querer desvendar as faces por trás dos monstros em Scooby-doo. No entanto, percebi, ao longo das minhas investigações, que essas figuras são fundamentais para a compressão de muitas metáforas e alegorias desenvolvidas por esses filmes.
A palavra monstro advém, etimologicamente, do latim monstrare, que significa: apontar, indicar, denunciar. Ou seja, originalmente, o monstro é aquele capaz de chamar a atenção para uma questão, que, antes, escondida ou pouco mencionada, é suscitada muitas vezes por meio do seu corpo. Para Jeffrey Jerome Cohen,[1] o corpo do monstro é, antes de tudo, a corporificação de um momento cultural — de uma época, de um sentimento e de um lugar (COHEN, 2000). Essa afirmação é importante para que sejamos capazes de refletir que a imagem do monstro é mutável, e se associa ao contexto cultural em que foi desenvolvida.
Analisar as fisicalidades inerentes a diferentes tipos de monstros pode nos ajudar a reconstruir um panorama que auxilia na compreensão dos principais conceitos de moralidade, por exemplo, de uma determinada época, assim como estudos dessa época nos permitem compreender um pouco mais sobre seus monstros e vice-versa. Ou seja, tudo aquilo que é considerado absurdamente repulsivo, imoral, violador, transgressor a ponto de se materializar em uma figura que se pretende amedrontadora é próprio do monstro. Michel Foucault[2] (2002), por exemplo, parte do princípio de que a noção de monstro é fundamentalmente jurídica, pois ela determina o que é referente à violação e à transgressão:
[...] jurídica, claro, no sentido lato do termo, pois o que define o monstro é o fato de que ele constitui, em sua existência mesma e em sua forma, não apenas uma violação das leis da sociedade, mas uma violação das leis da natureza. Ele é, num registro duplo, infração das leis em sua existência mesma. O campo de aparecimento do monstro é, portanto, um domínio que podemos dizer "jurídico-biológico" (FOUCAULT, 2002, p. 69).
O apontamento feito por Foucault sobre a noção de domínio "jurídico-biológico” remete ao conceito desse corpo que, por ser uma representação das violações da natureza, expõe e, de alguma maneira, legisla sobre o que seriam consideradas as “normalidades”[3] das sociedades. Pode-se dizer que, pelo simples fato de ser considerado “anormal”, esse corpo aponte ou indique o seu oposto, ou seja, o que pode ser “normal”, e acabe, por conseguinte, gerando um paradigma daquilo que é transgressor. Isso amplia a noção de que o corpo monstruoso é uma constituição física que ilumina, por meio desse contexto jurídico, o que determinadas sociedades interpretam como delinquências, seus questionamentos antissociais referentes às leis que cada sociedade rege ou aos conceitos, dados por regras inventadas como meios de poder, de “normalidade” admissibilidade, plausibilidade.
É importante levar em conta que tanto os conceitos de “normalidade” quanto os de “anormalidade” estão envolvidos em uma construção social hierárquica como dispositivos de poder a serviço daqueles que mantêm os padrões hegemônicos. Se trouxermos como exemplo os corpos com deficiência que, por vezes, ainda hoje são incoerentemente apontados como monstruosos, anormais, ou incapazes, podemos compreender como são exercidas essas estruturas de poder. Quem são os que ditam ou que vêm, há sucessivos séculos, ditando as regras nesse contexto? Para fomentar essa discussão, trago as palavras do pesquisador e artista da dança Carlos Eduardo Oliveira do Carmo (2019):
A bipedia, assim como a branquitude e a heterossexualidade, nas relações étnicoraciais e da sexualidade, respectivamente, pautam toda a construção de mundo, e tudo que não se relaciona com isso está submetido às regras da exceção. Então, a pessoa com deficiência, a negra, trans, gay ou lésbica, por exemplo, é sempre considerada como “assunto”, um fenômeno a ser observado, estudado, compreendido, justamente porque não é considerado dentro da estrutura. No entanto, compreendo que há um corpo que determina esse pensamento e toda estrutura social. Parece possível afirmar que esse é o corpo bípede, branco, hétero e cis que até hoje ocupa os principais espaços de poder e saber (CARMO, 2019, p. 7).
No intuito de enfatizar essa estrutura social, política, econômica e cultural apresentada na citação acima, Carmo defende o conceito de bipedia compulsória. Segundo o autor, há uma dimensão cultural que mascara os seus preconceitos, apresentando medidas paliativas disfarçadas de inclusão, mas que, na verdade, promovem exclusão e manutenção de estereótipos. Penso ser importante enfatizar que esta pesquisa pretende compreender essas estruturas de monstrificação que hierarquiza os corpos, na busca de tentar subverter as estruturas hegemônicas que estipulam as ditas “normas”; apresentando, assim, como monstruosas as ações daqueles que mascaram seus preconceitos e estipulam os padrões hegemônicos.
Se buscarmos exemplos em que uma parcela da sociedade detém os poderes do discurso e geram narrativas distorcidas para “monstrificar” outras culturas e submetê-las a um processo de desumanização, poderemos encontrar várias recorrências no decorrer da história. Uma delas, de cunho extremamente racista, diz respeito aos europeus em relação aos africanos em que, no início da renascença, há relatos nos quais a pele negra estava associada a queimaduras advindas do fogo do inferno, significando, assim, na mitologia cristã, uma proveniência demoníaca (COHEN, 2000). Esse racismo, herdado de nossos colonizadores, perdura até hoje, mas é reconfigurado ao nosso contexto. Então, analisando uma narrativa cinematográfica contemporânea, Jaime Amparo Alves[4] nos apresenta um exemplo de desumanização do corpo negro no filme Cidade de Deus (2002):
O comportamento patológico de Zé Pequeno é a peça central por meio da qual a narrativa do filme é construída. Em uma cena marcante, Dadinho aos doze anos elabora um plano para roubar um motel no centro do Rio. A cena perturbadora mostra os hóspedes do motel, todos brancos, sendo assassinados pela criança negra. O desespero e o horror das vítimas brancas são contrastados com o prazer e a vontade insaciável de matar de uma criança que assassina suas vítimas com um sorriso no rosto. Aqui a imaginação racista não tem limites: o contraste brutal entre a selvageria de uma criança negra e a impotência de suas vítimas brancas produz uma catarse racial. O espectador é convidado a sentir empatia com as vítimas brancas e ódio/medo da criança negra perversa (ALVES, 2016, p. 64).
A discussão que autor propõe é interessante para questionarmos de que maneira pessoas negras são comumente retratadas na dramaturgia brasileira, afinal de contas, não seria esse um exemplo evidente da construção de uma narrativa aterrorizante que converte um personagem em monstro? Mesmo pensando que essa cena pode buscar enfatizar a que ponto de crueldade pode chegar um ser humano que foi submetido a uma série de violências advindas do estado, cabe o questionamento de por que buscamos enfatizar a desumanização do oprimido ao invés do opressor?
A importância de trazer essa citação está no fato de compreender que há um jogo de poder evidente na elaboração dramatúrgica desses personagens e que é de extrema pertinência compreender como ele é feito para tentar combater os preconceitos estabelecidos, ou, talvez, gerar novos monstros que, de fato, representem o papel de opressores. Inúmeros são os exemplos do uso degenerado da imagem do corpo negro nas mais diversas produções culturais de nosso país, e, diante desse panorama de racismos explícitos, faz-se necessário refletir quais os tipos de corpos estão sendo “monstrificados” e quem escreve as narrativas hegemônicas.
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[1] Jeffrey Jerome Cohen é professor de Língua Inglesa e diretor do Programa em Ciências Humanas da George Washington University. Tem publicado artigos sobre teoria do gênero e sobre a construção cultural da monstruosidade.
[2] Michel Foucault (1926-1984) foi um filósofo, historiador das ideias, teórico social, filólogo e crítico literário. Suas teorias abordam a relação entre poder e conhecimento e como eles são usados como uma forma de controle social por meio de instituições sociais.(revisar)
[3] Opto por utilizar o termo “normalidade” entre aspas por compreender que se trata de conceito é volátil e passível de questionamentos. Apesar de sua incongruência penso ser importante utilizá-lo, nessa pesquisa, para levantar discussões sobre sua significação, com será visto nos parágrafos a seguir.
[4] Antropólogo e Jornalista. É professor de Antropologia na City University of NewYor/Colleg of Staten Island EUA. Investigador associado do Centro de Estudos Afrodiaspóricos de La Universidad Icesi (Colômbia) e integrante da Uneafro-Brasil.
Podemos encarar a volatilidade que o conceito do monstro carrega, considerando que, muitas vezes, o corpo monstro é aquele que se transmuta e surpreende os olhares dos que tentam o decifrar, frequentemente quando, dentro de uma narrativa ficcional, achamos que somos capazes de desvendar o que, de fato, representa a ameaça dessa figura. Ela é capaz de nos surpreender e mudar aquilo que acreditamos ser sua constituição:
O monstro é, dessa forma, a corporificação viva do fenômeno que Derrida (1974) rotulou de “o suplemento” (ce dangereux supplément): ele desintegra a lógica silogística e bifurcante do “isto ou aquilo”, por meio de um raciocínio mais próximo do “isto e/ou aquilo”, introduzindo o que Barbara Johnson (1981, p. xiii) chamou de “uma revolução na própria lógica do significado” (COHEN, 2000, p. 32).
Essa abordagem diz muito a respeito das estruturas subversivas que embasam a noção de monstro - subversivas, pois refletem sobre a sua capacidade de se rebelar em relação à lógica por meio de uma corporificação enigmática. A revolução da lógica do significado citada por Johnson pode ser refletida nos estados corporais desses seres que, como vamos ver a seguir, está repleta de conceitos relacionados a dualidades e oposições. Talvez, esse seja um dos mecanismos responsáveis por gerar estranhamento, repulsão, medo e afins, no espectador de uma obra de terror.
Depois de apresentar esses breves apontamentos sobre a ideia daquilo que é ser monstro e que nos ajudam a compreender essa figura como um importante gatilho instigador de reflexão sobre as nossas questões impostas de “normalidade” ou moralidade social, gostaria de focar na esquematização desenvolvida por Carroll (1999), que trata sobre a elaboração dessas figuras para que, de fato, elas tenham uma força na função que lhes é destinada dentro de uma narrativa de terror: causar medo ou sensações derivadas desse.
Para Carroll (1999), é importante estabelecer a diferenciação entre o que ele chama de emoções do terror, pois isso nos ajuda a compreender quais mecanismos estão presentes em uma obra quanto à diferenciação da forma como o espectador reage sobre ela, e que não podem ser comparados com ameaças concretas. O terror vivenciado ao assistir cenas de um personagem Serial Killer não pode ser comparado ao terror de se entrar em contato com um Serial Killer na vida cotidiana que pode, de fato, ameaçar uma vida. O termo cunhado por ele para descrever a sensação que experimentamos ao apreciar uma obra de terror é o terror-arte. No decorrer de sua obra, Carroll (1999) apresenta com mais detalhes as especificidades desse conceito. No entanto, o que mais me interessa nessa perspectiva de pensamento é o reconhecimento e análise da singularidade que o terror adquire ao ser provocado por uma obra de arte e o que é esperado que se alcance quando um monstro é bem elaborado.
Segundo o autor, primeiramente, o que é impreterível para que uma criatura cause terror-arte é que ela possa “representar alguma espécie de perigo”. Essa representação pode se dar de duas maneiras: a primeira delas seria por suas características físicas, coisas tais quais: grandes garras, fileiras de dentes afiados, apresentação de força extrema ou sobrenatural. Ou a segunda, que se trata, principalmente, da capacidade de desenvolver danos morais, culturais ou sociais como demônios que, por meio da possessão, podem destruir a identidade de sua vítima, ou seres humanos que corporificam os medos infantis ou sexuais. A partir dessa premissa, são apresentadas algumas subdivisões de estruturas dessas monstruosidades.
A fusión (fusão), a primeira delas, seria, basicamente, a junção de dois atributos opostos dentro da concepção de uma mesma figura. Tais características devem ocupar, ao mesmo tempo, essa figura, o que gera uma incongruência imagética e um estranhamento à primeira vista. Sobre os aspectos da fusão, o autor discorre:
Uma estrutura para a composição de seres de terror é a fusão. No nível físico mais simples, isso geralmente envolve a criação de criaturas que transgridam distinções categóricas como interior/exterior, vivo/morto, inseto/humano, carne/máquina e assim por diante. Múmias, vampiros, fantasmas, zumbis e Freddy Krueger - A hora do pesadelo, são nesse sentido figuras de fusão. Cada um deles, de maneiras diferentes, confunde a distinção entre vivos e mortos. Cada um, em certo sentido, está vivo e morto. Uma figura de fusão é um composto que une atributos que são considerados categoricamente diferentes e/ou opostos no esquema cultural das coisas em uma entidade espaço-temporal discreta (CARROLL,1999, p. 56-57, tradução minha).[1]
Podemos citar, como exemplo de fusão, pessoas possuídas em filmes de possessão (ver figura 5), pois esse é um caso evidente em que duas ou mais entidades opostas ocupam o mesmo tempo e espaço em um mesmo corpo. Outro exemplo extremamente conhecido seria a figura da criatura do Doutor Frankenstein, que tem um corpo constituído de órgãos de outras pessoas e conserva-se num limbo entre a vida e a morte.
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[1] Una estructura para la composición de seres de terror es la fusión. Al más simple nivel físico esto suele implicar la construcción de criaturas que transgreden distinciones categoriales como dentro/fuera, vivo/muerto, insecto/humano, carne/máquina y demás. Momias, vampiros, fantasmas, zombis y Freddie, la pesadilla de Elm Street, son en este sentido figuras de fusión. Cada una de ellas, de diferentes modos, desdibuja la distinción entre lo vivo y lo muerto. Cada una, en algún sentido, está a la vez viva y muerta. Una figura de fusión es un compuesto que une atributos que se tienen por categorialmente distintos y/o opuestos en el esquema cultural de las cosas en una entidad espacio-temporal discreta (CARROLL, 1999, p. 56-57).
A segunda estrutura, a fisión (fissão), é a ideia de que as características opostas não ocupam o corpo na mesma dinâmica de tempo e espaço. Isso tem a ver, por exemplo, com a figura do lobisomem que se transmuta a partir do gatilho da lua cheia. Ou seja, a dicotomia homem-animal permanece, mas não ao mesmo tempo, se usarmos como exemplo a história de origem do mito na qual a partir da lua cheia o homem se converte literalmente em lobo.
As duas entidades não coexistem ao mesmo tempo, elas se dividem. Outro caso muito recorrente de exemplo de fissão na história do cinema são os doppelgängers, que são duplos (ou clones) de uma mesma pessoa, mas que expressam outras personalidades que, no caso do terror, estão voltadas para o mal.
Carroll (1999) relata que a dinâmica dos duplos se assemelha à síndrome de Capgras[1], em que o indivíduo tem alucinações de que uma pessoa próxima a ela possui um duplo ameaçador que quer lhe fazer algum tipo de mal (CARROLL, 1999). Podemos mencionar, como exemplo de doppelgängers, os duplos dos personagens do filme Nós (Us, 2019), do diretor Jordan Peele, que são clones criados em laboratórios subterrâneos das cidades nos Estados Unidos que resolvem se rebelar e assassinar sua metade original, a fim de tomar posse do local que acreditam ser de seu pertencimento.
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[1] O nome faz referência ao psiquiatra francês Joseph Capgras (1871-1950), um dos primeiros a relatar casos em que pacientes acreditavam que sósias mal-intencionados tomavam lugar de pessoas próximas a eles.
Outra estrutura usada pelas produções de terror segundo Carroll é a magnificación (magnificação), que significa a ampliação de características físicas de seres que já são considerados perturbadores ou repugnantes causadores de muitas fobias, o exemplo mais obvio dessa estrutura são os filmes com animais gigantes. Esse tipo de monstro pode ser encontrado em filmes como Megatubarão (The Meg, 2018) do diretor Jon Turteltaub (ver figura 08), ou Anaconda (1997) de Luis Llosa, que exploram cenas de ataques desses animais proporcionalmente descomunais e extraordinariamente habilidosos, uma representação de máquinas de matar e destruir monumentos.
Já a masificación (massificação), a quarta estrutura apresentada pelo autor, trataria da multiplicação de seres repugnantes guiados por algum propósito enigmático, segundo ele, o de massificar muitas criaturas que já são repugnantes. Juntas e guiadas por um propósito inamistoso, aumenta a ameaça gerada por esses seres que já são fóbicos (CARROLL, 1999), como podemos ver em Aracnofobía (1990), de Frank Marshall (ver figura 9), filme que retrata uma cidade sendo tomada por aranhas venenosas que se multiplicam initerruptamente.
Apesar das estruturas anteriores estarem diretamente relacionadas à alteração de aspectos físicos, há, também, a estrutura de metonimia (metonímia) que é aquela em que o ser, não necessariamente, é repugnante, mas está envolto em um contexto insólito. Podemos citar, como um dos maiores exemplos, o personagem Drácula que, não necessariamente, é repugnante, mas está envolto em um contexto insólito. Uma produção recente que trabalha com essa ideia é A bruxa (The witch, 2015), de Robert Eggers (ver figura 10), que mostra os estranhos acontecimentos na vida de uma família a partir do momento em que eles constroem uma casa perto de uma floresta, onde, supostamente, vive uma bruxa. A metonímia, nesse filme, estaria relacionada com a jovem suspeita de ser a responsável por causar todos os acontecimentos trágicos que envolvem sua família no decorrer da trama.
Fusão, fissão, magnificação, massificação e metonímia, essas estruturas juntas nos dão pistas de como são pensadas as características físicas e contextuais desses seres e de que forma elas podem efetivamente ajudar a produzir personagens que são/serão possíveis representações de metáforas de aspectos culturais que interrogam nossas concepções de “normalidades”. Deve se considerar, também, que essas estruturas podem se mesclar, e alguns monstros são compostos de duas ou mais dessas características, o que quer dizer que o fato de existir um monstro em que a base de sua estrutura é a fusão não exclui a possibilidade de que ele também use da característica da magnificação, por exemplo.
Percebo que o trabalho de Carroll contribui, imensamente, para a análise e compreensão do universo dos filmes de terror e de como somos seduzidos a temer esse tipo de lógica. É de extrema importância compreender, pois, que as características mencionadas acima não são necessariamente um determinante para que uma criatura seja considerada aterrorizante. Pode ser que partes dessas estruturas estejam inseridas em outros contextos que não os dos filmes de terror, como os dos contos de fadas, por exemplo, em que não apresentam nenhum tipo de ameaça.
O objetivo de apresentar esses conceitos desenvolvidos por Carroll é o de elucidar a ideia de que há um constructo que permeia a fisicalidade dos monstros e de que compreender esse constructo nos ajuda a ampliar as concepções de estados corporais, dentro do universo artístico no trabalho de dança e teatro. Como foi discorrido até aqui, o conceito de monstruosidade está envolto de tópicos pertinentes para a promoção de uma discussão aprofundada referente a variados temas sociais. Ao apresentar alguns dos mecanismos usados pela indústria cinematográfica, pretendo refletir e experimentar como esses mecanismos podem ser úteis em um processo de criação em dança para desenvolver estados corporais monstruosos. Tais aspectos serão descritos no último capítulo desta Dissertação.
A compreensão do terror como possiblidade de inspiração para criação de movimento foi tomando espaço em meus pensamentos a partir da minha compreensão das possibilidades de estudos do corpo na criação em dança e teatro. Em 2013, início minha formação no curso de interpretação teatral da Universidade de Brasília (UnB).
O currículo dos cursos de Artes Cênicas da Unb, em meados de 2013, foi pensado para ampliar os horizontes daqueles que tinham como interesse trabalhar nas mais diversas áreas desse campo. Sendo assim, tínhamos ao nosso dispor, uma gama variada de componentes curriculares que trabalhavam as diferentes necessidades que um artista das artes cênicas pode vir a ter. Obrigatoriamente, todos os alunos, independente das áreas (bacharelado/licenciatura), cursavam os três componentes curriculares de movimento e linguagem. Nelas, éramos convidados a reconhecer o nosso corpo como fonte de linguagem e comunicação e explorávamos seus significados possíveis por meio de exercícios de composição de partituras, estudo de anatomia corporal, contato-improvisação, pilates, biomecânica, labanotation[1], acrobacias, dentre muitos outros. Basicamente, tivemos uma formação que nos dava a possibilidade de reconhecer diferentes modalidades de estudo do movimento e de parte das produções bibliográficas que discutiam esses temas. Os estudantes que se interessavam em verticalizar nessas práticas podiam se encaminhar para projetos de pesquisa e extensão guiados pelas professoras que compunham a cadeia de estudos do corpo.
Aerar-se foi o nome da primeira mostra de processos de criação e exercícios do componente curricular de movimento e linguagem 1, ministrada pela Prof.ª Dr.ª Fabiana Marroni Della Giustina. Foi, também, um grande ensinamento no meu processo de compreensão do corpo como potência de criação nas artes. Segundo o dicionário Michaelis (1994), aeração significa ventilação ou renovação do ar em ambiente fechado. É o ato de aerar ou arejar determinado elemento. Consiste na troca de gases entre o elemento a ser arejado e a atmosfera.
A partir da metáfora do aerar-se, assimilei a ideia de que meu corpo é poroso e de que a riqueza do ser corpo em estado aerado está no fato de que a porosidade amplia a possibilidade de troca e propicia a abertura de múltiplas estratégias de composição em dança.
Um ano antes de iniciar minha formação na UnB, ganhei uma bolsa de estudos em uma academia de dança que tinha como base o ballet clássico. Enquanto começava a compreender meu corpo em diálogo com as técnicas de balé, graham e jazz, ensinadas com rigor, na Academia de Dança Claude Debussy, era, por outro lado, convidado a aerar-me e deixar que outras formas de dançar brotassem em mim a cada manhã nas aulas de movimento da UnB. Foram, ao todo, cinco anos de estudos rigorosos e diários do balé dos quais três participei da Atmos Cia de Dança[2] onde tive espaço para desenvolver trabalhos coreográficos autorais que foram apresentados em mais de 10 festivais de dança em Brasília.
Comecei, então, a entender que o estudo simultâneo entre o ballet e a experimentação cênica alicerçada em componentes da dança contemporânea seria uma grande oportunidade de expandir meu conhecimento corporal e desenvolver composições autorais que expressassem meus anseios e desejos de me comunicar dançando.
Em março de 2015, logo após um ensaio da peça Ainda vejo tudo branco, adaptação da obra Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, vi-me em um diálogo intrigante com um amigo e companheiro de cena, Yuri Fidelis George Souza Donas. Nossas conversas sobre dança e teatro normalmente giravam em torno de variadas questões: Será que espetáculos ainda têm capacidade de instigar o espectador a ponto de motivá-lo a refletir sobre suas certezas? Seria ainda possível gerar reações diversas na plateia como espanto ou medo? Por que é tão difícil encontrar espetáculos que promovam esse tipo de acesso no espectador? Assim como o cinema produz filmes de terror, será que não existem espetáculos de terror? Eram muitas as questões, e, para tentar respondê-las, buscávamos assistir ao maior número de peças de teatro em cartaz em Brasília e começamos a pesquisar pela internet sobre as possíveis recorrências do terror nas diferentes linguagens: dança, teatro, performance.
Os primeiros dados encontrados por nós eram relativos à peça de teatro Titus Andronicus, de Shakespeare, que, dentre as diversas montagens, destacam-se a do diretor teatral, Peter Brook (1925), em 1950, e da companhia de teatro inglesa, Royal Sheakespeare Company, em 2005, ambas eram apresentadas com ambulâncias do lado de fora dos teatros devido aos números de espectadores desmaiados em cada sessão. O motivo principal para tanto alarde era o número exacerbado de mutilações que ambas as montagens reproduziam com exímia veracidade. Com o passar do tempo, fomos percebendo que, nos campos do teatro e da dança, é possível reconhecer várias reportações ao insólito que flertam ou servem de inspiração para o gênero terror ao apresentar reflexões que se relacionam aos tormentos humanos. Outro exemplo desse caráter com o qual nos deparamos estava relacionado a Mary Wigman, uma das artistas evidenciadas no movimento expressionista que, segundo Soraia Maria Silva[3] (2002), foi um movimento que oferecia um panorama das angústias do homem contemporâneo na busca por um novo paradigma do corpo em movimento. As obras de Mary Wigman (ver figura 11), fortemente influenciadas pelo contexto político-social da Primeira Guerra, exprimiam o desespero e a revolta de suas experiências se configurando em uma estética, por vezes, perturbadora.
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[1] Labanotation é um método registro gráfico desenvolvido pelo bailarino, intérprete, coreógrafo e musicólogo, Rudolf Laban (1879-1958), que consiste na anotação de movimentos, levando em conta fatores, como peso, tempo, espaço e fluência.
[2] A Atmos Cia. de Dança iniciou seus trabalhos em 2005 e vem abrindo espaço aos bailarinos da cidade para desenvolver de forma profissional seus conhecimentos, mantendo, aperfeiçoando e homogeneizando o caminho das linhas técnicas adotadas durante os anos de aprendizado da dança. Com o firme propósito de estimular, gradativamente, o crescimento técnico, proporcionar vivência artística a estes bailarinos e apostar na renovação dos profissionais do DF, a companhia oferece a seus integrantes a chance de entrar no restrito mercado de trabalho da dança no Distrito Federal. As aulas de balé clássico, moderno e contemporâneo, ministradas pelos professores da companhia logo se transformaram em núcleo de profissionalização ao alinharem-se com as diferentes linguagens/criações dos coreógrafos convidados e residentes, trazendo aos bailarinos um conhecimento diferenciado adquirido por eles no Brasil e no exterior. Disponível em: <http://atmosciadedanca.blogspot.com/>. Acesso em: 14 mar. 2022.
[3] Pesquisadora, poeta, produtora, diretora artística, coreógrafa, bailarina, artista plástica e estilista. Graduada em Dança pela Universidade Estadual de Campinas (1989), mestre em Artes pela Universidade Estadual de Campinas (1994) e doutora em Literatura pela Universidade de Brasília (2003)
Ter conhecimento sobre essas recorrências nas artes cênicas, citadas acima, foi importante para ampliar nosso conhecimento acerca de alguns exemplos. No entanto, não foi o suficiente, pois não tínhamos vivenciado cada uma das situações. Era importante passar por alguma experiência que afirmasse a possibilidade de sentir medo a partir de um espetáculo. Foi, então, que, em 2014, pude assistir à peça The Best of Leo Bassi, um solo do bufão, ator e apresentador italiano, Leo Bassi (1952) (ver figura 12), que, dentre várias de suas ações, simulava que atearia fogo na plateia. Pela primeira vez, pude perceber, não somente em mim como também em grande parte da plateia, o medo causado em decorrência de uma ação cênica. Essa vivência foi crucial na minha trajetória, por se tratar de uma vivência marcante, por mais que o terror não estivesse associado, naquele momento, a um estado corporal específico, mas sim ao falso risco de o teatro pegar fogo, alguma contingência do medo no teatro se tornou efetiva.
Ao chegar em Salvador, em 2016, devido a um processo de transferência externa entre o curso de teatro da UnB e o da Universidade Federal da Bahia-UFBA, tive a possibilidade de cursar os componentes curriculares Laboratório de Criação Coreográfica 1 e Laboratório de Corpo e Criação 1, ofertados, naquela época, pelo Prof. Dr. Lucas Valentim Rocha e pela Profª. Mª. Luciane Sarmento Pugliese Borges, na Escola de Dança da UFBA, como componentes curriculares optativos. Ambas tinham como intuito possibilitar ao discente um espaço fértil para a criação de um trabalho autoral em dança. Nesse contexto, construí meu primeiro solo, Danse Macabre (2016), apresentado pela primeira vez no Painel Performático da Escola de Dança da UFBA. Esse solo buscava conjugar a maioria dos meus questionamentos sobre as potências do terror relacionadas à dança e ao teatro e tinha, também, a necessidade de abordar as incertezas e insatisfações políticas que rondavam o cenário brasileiro durante o processo de Impeachment da ex-presidenta, Dilma Rousseff. Foi no contexto de criação dessa disciplina e, posteriormente, na apresentação do Painel Performático, que tive a chance de evidenciar que dança, teatro e terror, quando correlacidados, podem fornecer vários caminhos de reflexão e debate sobre questões sociais. Os procedimentos de criações desenvolvidos por mim, nesse e em outros experimentos, bem como a discussão sobre a repercussão desses trabalhos estarão abordados no último capítulo dessa Dissertação.
O fim da adolescência e o início da vida adulta descortinava as encenações e me anunciava que a realidade poderia ser, copiosamente, mais sangrenta, perversa e cruel do que a ficção. A notícia de que ladrões haviam invadido a casa de um familiar, nossa vizinha, na calada da noite, fazendo toda a sua família de reféns e roubando os poucos pertences de sua casa, foi, para mim, um marcador temporal no tocante ao terror e à violência. Ao todo, foram 7 invasões na mesma casa no decorrer de 10 anos. Mesmo com a implantação de grades em todas as entradas e cães violentos, o poder que os bandidos cooptavam parecia ser sempre maior que os esforços de proteção. Minha casa, desde então, não me parecia mais um espaço de resguardo como antes.
Sair à rua se tornava um risco, na medida em que víamos as notícias de pessoas sendo assassinadas por não entregarem seus pertences, por reagirem a um assalto ou simplesmente por estarem passando “no lugar errado na hora errada”. O medo espreitava nossa convivência e a sua causa parecia advir de um inimigo próximo. Sempre me foi apresentada a imagem das periferias como as nascentes de toda violência que cerceava a sociedade.
Os telejornais sensacionalistas convidavam à mesa dos espectadores, no horário do almoço ou no lanche do fim da tarde, os autores de homicídios, as vítimas de balas perdidas, os injuriados sedentos por vingança, e os prantos de mães e familiares ao presenciarem os corpos de seus entes assassinados. Cada um desses casos acompanhados de uma apresentação espetacularizada e de vendas e sorteios de produtos. Diferente das pegadinhas que entretêm com a ficção, os jornais sensacionalistas entretêm com a violência exposta e “temperam” nossos almoços com um toque de medo e indignação.
Mais uma vez, o terror se fazendo presente em nossas vidas e, nesse caso, reforçando a ideia defendida por mim naquela época de que o principal inimigo da nossa nação é a impunidade criminal em relação às periferias: o foco principal de matérias e locação desses jornais. Essa distorção, associada à ideia de que a falta de policiamento desencadeia os autos índices de violência, pode ser citada como exemplo de reprodução da dinâmica de doença, medicamento, profilaxia, se compreendermos o circuito de afetos que a envolvem.
O medo, como afeto político central de coesão social, é um conceito apresentado por Safatle, em sua obra O circuito dos afetos (2015), que remete a uma linha de pensamento da filosofia política fundamentada desde o século XVII. Como dito anteriormente, a ideia de que para que a coesão social exista é necessário que o estado exerça o poder soberano sobre os indivíduos foi apresentada pela primeira vez pelo teórico político Thomas Hobbes (1588-1679), em sua obra O Leviatã (1651). A justificativa de Hobbes está embasada na potência belicista da eminência de uma “guerra de todos contra todos”. A doença, nesse caso, seria a violência, a profilaxia, o estado, e a medicina seria “sua mão de ferro”, disfarçada sob o pretexto de proteção. Relativo ao tema, Safatle (2015) discorre:
O medo como afeto político, por exemplo, tende a construir a imagem da sociedade como corpo tendencialmente paranoico, preso à lógica securitária do que deve se imunizar contra toda violência que coloca em risco o princípio unitário da vida social. Imunidade que precisa da perpetuação funcional de um estado potencial de insegurança absoluta vinda não apenas do risco exterior, mas da violência imanente da relação entre indivíduos. Imagina-se, por outro lado, que a esperança seria o afeto capaz de se contrapor a esse corpo paranoico. No entanto, talvez não exista nada menos certo do que isso. Em primeiro lugar, porque não há poder que se fundamente exclusivamente no medo. Há sempre uma positividade a dar às estruturas de poder sua força de duração. Poder é, sempre e também, uma questão de promessas de êxtase e de superação de limites. Ele não é só culpa e coerção, mas também esperança de gozo. Nada nem ninguém consegue impor seu domínio sem entreabrir as portas para alguma forma de êxtase e gozo (SAFATLE,2015, p. 11).
Pode-se inferir, a partir dessa colocação, que essa estratégia política de coerção se fundamenta na produção de falsas expectativas. Na medida em que compreendemos que medo é fundamentalmente representado como a expectativa de um mal futuro, e que a esperança é a expectativa de um bem futuro, pensar uma sociedade embasada nesses afetos produz um ciclo vicioso, ou paranoico de espera pela ocorrência de algo que está a lhe proteger ou ameaçar constantemente, uma lógica espelhada na guerra de todos contra todos de Hobbes (1588-1679). Intrigantemente, o filosofo inglês utiliza da imagem de um monstro, o Leviatã, para inferir que a ordem só pode ser conquistada por meio do terror.
Apesar de o Leviatã ter seus fundamentos no século XVII, podemos afirmar que outros monstros seguiram seu legado e permanecem perpetrando seus atos de violência, baseados nas mesmas premissas. Embora, normalmente, busque-se um responsável por todas as atrocidades, acredito ser mais adequada a concepção de uma corja de monstros como metáfora dos agentes de estado no contexto brasileiro. De acordo com Safatle, há de se insistir que não há política sem incorporação, pois só um corpo pode afetar outro corpo. Habitamos o campo político como sujeitos corporificados e, por isso, como sujeitos em regime sensível de afecção (SAFATLE, 2015). Logo, os corpos que se agenciam em prol de uma política da morte em nosso país são muitos e compactuam entre si.
O Terror de Estado no Brasil vem se agenciando das mais diversas maneiras. Apesar desse termo estar sempre prontamente associado ao período da ditadura, o fim do período não significou a cessão dos usos de terror como manobra do estado. Hoje em dia, suas táticas adquiriram formas aparentemente difusas, falseadas pela ludibriadora fachada da democracia. A questão do genocídio da população negra, por exemplo, assume uma boa “dimensão da precariedade e dos instrumentos de aniquilação física e simbólica que diuturnamente trabalham para extinguir o contingente negro brasileiro”, como afirma Flauzina (2006, p. 101).
O Terror de Estado no Brasil, atualmente, agencia-se num contexto acobertado, ábdito, recôndito, absconso e, por que não, obsceno? A Obscenidade é aquilo que, por apego à vida, temos medo de jogar em cena, mas que está lá. Tara, não; patologia, não: imaginário humano. De acordo com o especialista em cultura, Teixeira Coelho[1], “o imaginário não é feito de imagens arbitrárias, mas de imagens necessárias” (2003, p. 113). A obscenidade parece-me uma boa pista para a compreensão do Terror de Estado, pois, a partir do momento em que começo a observar o funcionamento das estruturas de violência no nosso país, percebo que muitas narrativas são sufocadas e permanecem fora de cena para que o show de horrores continue acontecendo.
Começo a compreender que não sou alvo constante da violência de estado por meio do meu contato com o Programa de Educação Tutorial-PET Comunidade Populares e Urbanas, na Universidade Federal da Bahia, tutoreado pela Prof.ª Dr.ª Ana Luiza Pinheiro Flauzina, o qual apresentei na Introdução. Nos anos em que estive como participante (2017-2019), tive a possibilidade de passar por um processo de formação profícuo no que diz respeito, principalmente, às questões de raça e racismo no Brasil. Por meio dessas experiências, começo a compreender a relação entre a violência e racismo que se estabelece em nosso país desde os períodos coloniais, fator de crucial importância para a o processo de concepção dessa pesquisa. Segundo Mbembe[2]:
Qualquer relato histórico do surgimento do terror moderno precisa tratar da escravidão, que pode ser considerada uma das primeiras instâncias da experimentação biopolítica. Em muitos aspectos, a própria estrutura do sistema de colonização e suas consequências manifesta a figura emblemática e paradoxal do estado de exceção (MBEMBE, 2016, p. 130).
Antes das violências perpetradas pelo estado na ditadura militar houve a escravidão, um dos maiores laboratórios de tortura da história. Compreender o Terror de Estado no Brasil significa, necessariamente, rememorar: os porões dos navios negreiros, que, hoje, podem ser revisitados nos presídios superlotados; as senzalas que se reconstituem nas periferias abnegadas de infraestrutura e assistência social; os capitães do mato que espelham o sistema policial aliado à organização das milícias. Mbembe atenta às evidências históricas de que os sistemas políticos miram suas armas, tradicionalmente, para um alvo particular, e esse alvo é o corpo negro.
Em seu ensaio Necropolítica- biopoder soberania estado de exceção política da morte, somos convidados pelo autor a pensar o estado como articulador da soberania e promotor do controle da morte, suas considerações ajudam a traçar uma narrativa de terror que tem como mote principal a destituição dos indivíduos de seu direito de viver. Entender que as táticas usadas pelo estado para cooptar poder geram ações concretas é importante para desenvolver uma noção de estado materializado/ corporificado que, por meio de seus agentes, consegue estruturar dinâmicas de organização espacial, física e de movimento como se estivesse a coreografar uma dança da morte.
A importância de construir uma noção de estado apartada de uma visão subjetiva, na qual fica complexo identificar os executores de suas ações e, dessa maneira, compreender suas dinâmicas, traz luz a fatos como o dos autos de resistência. No artigo Auto de resistência: A acção colectiva de mulheres familiares de vítimas de violência armada policial no Rio de Janeiro[3], as autoras explicitam que auto de resistência é o conceito jurídico empregue pela polícia no Brasil quando um determinado episódio violento é justificado por uma troca de tiros entre polícia e suspeitos de crime ou por legítima defesa. No Rio de Janeiro, anualmente, são registrados mais de mil homicídios causados por policiais militares. Não bastando o fato desse indício ser exorbitante, temos ainda a circunstância de que os policiais têm pleno resguardo do sistema legislativo de alegar legitima defesa, dando vasão para que sejam cometidos crimes impassíveis de punição. Os corpos alvos desse tipo de crime são principalmente o de jovens negros moradores de periferias, ou seja, essas mortes já estão endereçadas para um tipo específico de corpo. Mbembe expõe o racismo como legitimador e principal fonte de interlocução dessas mortes. E, dessa lógica, resultam dados como os a seguir:
* Em 15 de maio, a Polícia Militar e a Civil enveredaram pelo Complexo do Alemão, na Zona Norte carioca, atrás de drogas, munições e armas. Moradores relatam que presenciaram ou escutaram intensos tiroteios. A operação resultou em doze mortes. Somente um policial se feriu, sem gravidade.
* Em 18 de maio, o adolescente negro João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, morreu após receber um tiro de fuzil pelas costas. Ele brincava com os primos na casa de um tio em São Gonçalo, município da Grande Rio, quando a Polícia Federal e a Civil invadiram o imóvel à caça de traficantes.
* Também no dia 18 de maio, familiares de Iago César dos Reis Gonzaga disseram que policiais militares torturaram e mataram o jovem negro de 21 anos durante uma incursão pela Favela de Acari (Zona Norte do Rio). A PM não comentou a denúncia.
* Em 20 de maio, uma troca de tiros entre criminosos e a Polícia Militar na Cidade de Deus (Zona Oeste) interrompeu a distribuição de duzentas cestas básicas por voluntários locais. A batalha provocou a morte de João Vitor Gomes da Rocha, negro de 18 anos. Segundo a PM, o rapaz fazia parte de uma quadrilha que pratica sequestros relâmpago. A mãe dele, empregada doméstica, nega a versão das autoridades.
* No dia 21 de maio, enquanto patrulhava o Morro da Providência (Centro), a Polícia Militar entrou em confronto com bandidos. O tiroteio – que atrapalhou outra doação de cestas básicas, desta vez promovida por alunos de um pré-vestibular comunitário – ocasionou a morte de Rodrigo Cerqueira da Conceição. Os policiais afirmam que o rapaz negro de 19 anos portava uma pistola e um carregador, além de entorpecentes. Testemunhas, entretanto, alegam que o jovem trabalhava numa barraquinha quando o conflito eclodiu.
* Em 30 de maio, Matheus Henrique da Silva Oliveira – um barbeiro negro de 23 anos – tomou dois tiros e morreu enquanto andava de moto perto do Morro do Borel (Zona Norte). Vizinhos do moço contam que PMs fizeram os disparos. O caso ainda está sob investigação.
Os seis episódios de maio se deram após um mês particularmente sangrento. Em abril, 177 óbitos no estado do Rio decorreram de intervenções policiais. O número, divulgado pelo próprio governo, é 43% maior que o de abril do ano passado. (“EU NÃO AGUENTO MAIS CHORAR!” Fragmentos de revolta contra o assassinato de negros pela polícia explodem em manifestação no Rio (ANTENORE, 2020, p. 1).
Penso ser importante demonstrar parte das evidências de todos os conceitos abordados nesse tópico, mesmo sabendo que eles representam um pequeno percentual de um organismo tentacular e parasitário da estrutura de nosso país. No terceiro capítulo desta Dissertação, pretendo nutrir essa discussão apresentando novos dados em diálogo com outros autores que se dedicam a compreender esses mecanismos de demonstração de terror.
Apresentados os principais conceitos que alicerçam essa pesquisa, peço licença a(o) leitor(a) e convoco aqui todos os monstros que corroem as estruturas moralizantes edificadoras da sociedade para que plasmem em mim tudo o que é relativo à sua mais intrigante geometria, tudo o que constitui a obscenidade e incongruência de seus movimentos, tudo o que diz respeito a sua capacidade de gerar terror e horror, seja ele fugidio ou paralisante. Para que nos tornemos um só organismo, e, na calada da noite, furtemos dos déspotas seu reinado, construindo em sua mente um ambiente de constante pesadelo, constante pesadelo, constante pesadelo, constante pesadelo contracf, obliterum magnus, magnus, magnus, S’ccttcnhamulak. Sabth Omundrrs Ort Sabth Omundrrs Or’t Trructus. Plzaldf mhds wpstk-itr...
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[1] José Teixeira Coelho Netto é especialista em política cultural e colaborador da Catedra Unesco de política cultural da Universidad de Girona, Espanha.
[2] Joseph-Achille Mbembe (1957), é um filósofo, teórico político, historiador, intelectual e professor universitário camaronês.
[3] MOURA Tatiana, SANTOS Rita, SOARES Bárbara, Auto de resistência: A acção colectiva de mulheres familiares de vítimas de violência armada policial no Rio de Janeiro, Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 88 | 2010, colocado online no dia 10 outubro 2012, criado a 01 maio 2019. URL: http:// journals.openedition.org/rccs/1736; DOI : 10.4000/rccs.173.6