“Madiyo?”, um dos Agentes da História perguntou.
“Madi aayirikkum”, outro respondeu.
Chega?
Chega.
Afastaram-se dele. Artesãos avaliando sua obra. Procurando distanciamento estético. Sua Obra, abandonada por Deus e pela História, por Marx, pelo Homem, pela Mulher e (nas horas seguintes) pelas Crianças, jazia dobrada no chão. Estava semiconsciente, mas não se mexia. Tinha o crânio fraturado em três pontos. O nariz e ambos os malares quebrados deixavam o rosto pastoso, indefinido. O golpe na boca rachou o lábio superior e quebrou seis dentes, três dos quais estavam cravados no lábio inferior, invertendo horrivelmente seu belo sorriso. Quatro costelas quebradas, uma perfurando o pulmão esquerdo, o que o fazia sangrar pela boca. O sangue em sua respiração vermelho-vivo. Fresco. Espumoso. Intestino grosso rompido, com hemorragia, o sangue se acumulando na cavidade abdominal. A espinha afetada em dois pontos, a concussão paralisando o braço direito e resultando em falta de controle sobre bexiga e reto. Ambas as rótulas estavam quebradas (ROY, 2008, p. 319).
Apresentados os principais referenciais teóricos e as análises fílmicas relativas ao terror, pretendo, neste capítulo, compartilhar como esses referenciais corroboraram para o desenvolvimento de minhas criações artísticas e na minha forma de compor partituras corporais. O processo de buscar por esses aportes teóricos e articulá-los a um olhar para a cena ou para a criação fílmica nesta Dissertação partiu de um anseio de compreender os aspectos técnicos desse gênero para que, juntamente a essa compreensão, eu tivesse, ao meu dispor, fundamentos de criação. Não necessariamente cada um dos conceitos esteja atrelado a um procedimento específico que trabalhe apenas a partir de um princípio, mas a visão ampla de possibilidades com as quais eu poderia lidar me proporcionaram uma orientação de conexões cênico imaginativas para a criação em dança.
Percebo que a maturidade que fui adquirindo ao ter ciência do funcionamento de diferentes mecanismos de produção de terror, tanto no campo artístico quanto no âmbito político, estimularam-me a elucubrar cenicamente por meio de uma perspectiva interdisciplinar, além de perceber que as questões político-sociais já estavam como ignição, ainda tímida, mas já como mote de criação. Isso significa que os conceitos apresentados nesta Dissertação me encorajaram a desenvolver uma concepção cênica, na qual o corpo dialoga com uma série de outros elementos que ajudam a possibilitar a criação de metáforas relativas a uma temática específica. A abordagem é interdisciplinar, pois recorre a diferentes áreas de encenação buscando a produção e interação de cenários, figurinos, iluminação, filmagem, edição de vídeo entre outros, todos esses promovendo, significando e ressignificando um diálogo com o material de partituras corporais.
Iniciarei os meus relatos apresentando exercícios do meu primeiro processo criativo que tinha como intuito explorar as relações entre dança e terror, e apresento a constatação de que, já nesse momento, havia uma necessidade de metaforizar questões político-sociais. Na segunda etapa desse capítulo, atenho-me ao processo de criação do curta-metragem desenvolvido a partir e durante esta pesquisa de Mestrado, na qual apresento os aspectos técnicos do processo de pré-gravação, gravação e pós-gravação e a maneira como cada uma dessas etapas influenciaram na minha forma de pensar Dança. Apresentarei, também, um breve relato da minha experiência com o Grupo de Pesquisa CORPOLUMEN: redes de estudos do corpo, imagem e criação em Dança, e os aprendizados suscitados nesse contexto que me possibilitaram uma compreensão mais sensível para aspectos de criação em Dança associados ao Audiovisual. Por fim, discorrerei sobre a influência que o grupo belga de dança-teatro “Peeping Tom” exerceu nas minhas experimentações físicas, e a forma como cada um dos tópicos anteriores me conduziram para a estruturação final do curta-metragem.
3.1 Danse Macabre exercícios e descobertas no processo criativo
Ao chegar em Salvador, em 2016, devido a um processo de transferência externa entre o curso de Artes Cênicas da UnB e o da Universidade Federal da Bahia-UFBA, tive a possibilidade de cursar as disciplinas Laboratório de Criação Coreográfica 1 e Laboratório de Corpo e Criação 1, ofertados, naquela época, pelo Prof. Dr. Lucas Valentim Rocha e pela Profª. Mª. Luciane Sarmento Pugliese Borges, na Escola de Dança da UFBA, como disciplinas optativas. Ambas tinham como intuito possibilitar ao discente um espaço fértil para a criação de um trabalho autoral em dança. Decidi, então, que meu trabalho teria como mote o terror, e, durante um semestre, mergulhei em um processo criativo do qual construí meu primeiro solo, Danse Macabre (2016), apresentado, pela primeira vez, no Painel Performático da Escola de Dança da UFBA (2016). O processo de criação dessa performance já começava a apresentar aspectos que, ainda hoje, podem ser encontrados em meus segmentos de criação.
Dentro desse componente curricular, tive a oportunidade de apresentar a meus companheiros de turma esquetes de materiais que iam sendo criados no decorrer daquele semestre, bem como conduzir algumas dinâmicas que os envolvessem, no intuito de fomentar as investigações. Assim, pude tanto compreender como meus materiais criativos eram recepcionados por outras pessoas como perceber de que maneira diferentes corpos lidavam na prática com estímulos que, até então, eram experimentados somente por mim.
Muitos foram os motes para a criação de materiais que, posteriormente, seriam elencados e organizados na estrutura da performance. Prioritariamente, meu intuito era o de selecionar materiais que serviriam de inspiração para a criação de partituras corporais, sendo assim, pouco a pouco, foram se somando à pesquisa: músicas, filmes, imagens, textos e objetos e elementos que, de alguma maneira, instigavam-me a pensar sobre o terror e a sua relação com a dança, tais como facão, correntes, comidas, argila, palha de cipó, dentre outros.
As conexões feitas por meio desse conjunto de referenciais iam criando um campo fértil para a exploração de exercícios que, não necessariamente, seguiam uma ordem específica, os experimentos eram executados de maneira dinâmica, tentando seguir o fluxo de necessidades criativas.
Normalmente, era reservada uma sala para ensaios individuais em um horário específico da semana que era utilizado por mim para encontrar maneiras diferentes de acessar o universo do terror com meu corpo. Por vezes, eu já adentrava o espaço com um planejamento dos exercícios que seriam executados e, em outras, permitia-me entender como o acaso poderia me conduzir a esse ambiente, fazendo com que meu corpo habitasse aquele espaço de ensaio encontrando pontes de conexão com a temática. Por se tratar de uma construção fluida, cada exploração individual agregava de alguma maneira no que, posteriormente, comporia a performance final. Dessa menira, não existia, necessariamente, um padrão de exercícios que caracterizavam o mote de criação desse processo e, por esse motivo, descreverei, de forma breve, alguns dos exercícios que foram mais recorrentes nesse e em outros processos de criação.
Um deles consistia em explorar diferentes modos de composição com objetos pré-estabelecidos, que, ao meu ver, poderiam se relacionar com a temática do processo criativo (máscaras, facão, isqueiro, comida, galhos de árvores, corrente) e buscar encontrar diferentes ações físicas e qualidades de movimento que advinham do contato com esses objetos. Em algumas vezes, a escolha de cada material também partia do meu contato prévio com alguma obra ou artista específico, como foi o caso do experimento com argila inspirado em obras do artista plástico e performer francês, Olivier de Sagazan (1959). Os exercícios feitos com objetos estimulavam-me, também, a criar elementos cenográficos de maneira artesanal, como por exemplo, a confecção de máscaras, maquiagens e, até mesmo, de figurinos auxiliava-me a entender um pouco mais sobre as possibilidades de universos em que as ações físicas e qualidades de movimento pudessem estar inseridas.
Noto que, em alguns casos, com determinados elementos, como a argila, a máscara de galhos ou próteses de maquiagem (ver figuras, 35, 36, 37,38), a relação entre corpo e objeto propiciava uma potencialidade de inserção de materiais inorgânicos (os objetos/elementos) e orgânicos (meu corpo) o que, motivado pelo filme Tetsuo (1989), instigava-me a pensar no princípio da fusão de Carroll (1999). A relação de atributos divergentes que constituem o mesmo corpo, foi, muitas vezes, explorada por mim na tentativa de modificar a minha estrutura física. Nesses casos, procurei perceber como a diferença de estrutura poderia reconduzir minhas escolhas de ações físicas e de qualidades de movimento, convidando-me a visitar novas formas de mover que se diferenciavam dos padrões comumente executados por mim em uma improvisação.
Essa diferença de escolhas poderia ser guiada pela decorrência do peso que determinado elemento exercia sobre o meu corpo, fazendo com que eu tivesse que negociar a relação de sustentação das minhas bases ou da área na qual o peso estivesse sendo investido. Em outros casos, a sensação do contato com um elemento específico poderia ser o mote que influenciava essa escolha, por exemplo: ao me ater à sensação do pinicar da máscara de galhos, eu buscava maneiras para dar ênfase, exagerar como eu percebia essa sensação por meio dos movimentos corporais que eu criava naquele momento da sensação. No caso da prótese de maquiagem, houve também um jogo que partia da relação expressiva que a prótese proporcionava ao sugestionar uma lesão exposta. Nesse caso, houve a tentativa de perceber como a movimentação poderia ser executada, de forma a revelar ou esconder essa deformidade ou como as expressões faciais poderiam compor com esse elemento específico, propondo, assim, pequenas narrativas que surgiam pelo movimento de mostrar e esconder, por exemplo.
O princípio da fusão estaria, então, corroborando no aspecto de monstrificação da minha estrutura corporal e, consequentemente, proporcionando-me estímulos criativos com os quais eu alimentaria as minhas improvisações. A escolha dos elementos usados me apresentava alternativas narrativas geradas pelo diálogo entre movimento e o objeto, tal diálogo, por conseguinte, poderia ser utilizado como mote para a criação de metáforas cênicas.
Outro exercício recorrente foi o de criação de movimentos corporais a partir de textos variados, em que cada palavra do texto deveria corresponder a um movimento específico. As escolhas dos textos podiam ser aleatórias ou ligadas à temática, o importante era adquirir propriedade do material executado para que, posteriormente, ele pudesse ser repetido com fluência. Assim, a partir do jogo com as dinâmicas de movimento e o contexto em que eles eram inseridos, eu podia ressignificar cada gesto. Esse exercício me foi herdado dos processos criativos da disciplina de Interpretação Teatral 3, do curso de Artes Cênicas da Universidade de Brasília, ministrada pela Prof.ª Dr.ª Giselle Rodrigues. As partituras eram um elemento de criação importante no contexto da disciplina, pois ofereciam matéria-prima para a criação de cenas que, não necessariamente, tinham a ver com o mote inicial da criação das partituras. A versatilidade com a qual poderíamos deslocar os sentidos e denotar novas significações possibilitava que esse fosse um elemento curinga para a criação de cenas.
Nesse contexto, o universo sonoro sempre foi, para mim, um dos principais elementos que me auxiliaram no processo de criação de partituras corporais. Boa parte das performances executadas por mim, nesse e em outros projetos, partiam da necessidade de dialogar com sons e tentar extrair, por meio da movimentação corporal, alguma associação entre as sonoridades corporais e as sonoridades do universo do terror. Não por acaso, a escolha do nome do meu primeiro solo com essa temática foi Danse Macabre, termo que conheci ao ler o livro A história do Medo no Ocidente (1989), e que, no mesmo momento, levou-me a buscar por alguma criação do mesmo nome, para tentar descobrir se alguém já havia pesquisado sonoramente sobre esse assunto. Foi então que entrei em contato com a obra homônima do compositor francês da era romântica, Saint Saens [1](1835-1921).
Essa composição parecia me entregar várias pistas dos meus anseios numa composição que associasse dança e terror. O início que, ao meu ver, parecia tranquilo e despretensioso, logo depois se encaminhava para um crescendo apoteótico, o que me instigava a pensar numa dinâmica de apresentação de uma situação cotidiana que logo chegaria ao caos, entregando para o público uma pista falsa e, posteriormente, o surpreendendo com algo inesperado. A partir das premissas imaginativas que essa composição musical me afetava, eu me colocava em jogo para dançar e encontrar caminhos corporais que se associassem a esse universo. Não que a composição de Saint Saens evocasse sonoridades macabras, mas as características de construção das melodias, citadas acima, instigavam-me a encontrar elementos dramatúrgicos que ajudariam a compor essa e outras performances. As partituras corporais relacionavam-se ao estudo das sonoridades a partir do momento em que eu buscava associar as pistas narrativas que a música me oferecia, para relacionar a uma sequência de ações, ou a uma qualidade de movimento específica, que poderia ser explorada, posteriormente, em outras situações cênicas, em que, não necessariamente, a música estivesse presente.
Outro caminho que também tecia relação com sonoridades era o de gerar ruídos a partir do atrito de membros do próprio corpo. Essa estratégia compositiva foi explorada por mim, principalmente quando, ao buscar por referências que relacionassem dança e terror, passo a entrar em contato com o Haka: dança ancestral neozelandesa usada ainda hoje em rituais fúnebres, de celebração e confronto, muito comumente executada por equipes esportivas no início de jogos com o intuito de inibir o time adversário. Nessa dança, é predominante o uso de cantos pujantes associados a movimentações ritmadas e expressões faciais expansivas. A qualidade de movimento respeita uma lógica de contenção e explosão de força, em que, normalmente, os braços são usados para bater as mãos em partes do próprio corpo associando os movimentos ao ritmo. Os pés permanecem na maior parte do tempo golpeando o solo de forma enraizada e as pernas flexionadas num sentido de prontidão. Os cânticos são guturais e expressos como gritos de guerra.
As qualidades de movimento do Haka foram objeto de estudo em meus ensaios, e, a partir deles, desenvolvi uma partitura de movimento que foi, subsequentemente, usada em outras performances, buscando ser associada a um processo ritualístico e de intimidação. Por se tratar de um ato pujante, ele era inserido dramaturgicamente logo depois de um momento de cenas silenciosas, nas quais os movimentos contidos eram interrompidos pelas sonoridades estridentes dos golpes e gritos emitidos por mim tentando objetivar um susto (jump scare) na plateia.
[1] Dsiponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=YyknBTm_YyM>. Acesso em: 15 mar. 2022.
Não necessariamente, todos os exercícios executados por mim objetivavam, a priori, tecer uma relação direta com aspectos do terror, isso por entender que esse gênero não deve ser tratado de forma estanque, em que tudo que é relacionado a ele tem o propósito de evocar sensações ruins. Portanto, também havia momentos em que eu propunha a me desvencilhar de questões relacionadas à temática e buscava encontrar caminhos extremos de acesso ao que poderia ser engraçado, caricato ou despretensioso. Essa estratégia me ajudava a encontrar outras qualidades de movimento que, talvez, não fossem experimentadas caso eu restringisse meus objetivos com o intuito de apenas causar desconforto.
Para fins de compartilhamento, apresento o resumo de outras dinâmicas realizadas por mim nesse processo de criação: assistir a vídeos de animais em caça, reconhecer as qualidades de movimento e tentar reproduzir as ações dos predadores; improvisar, a partir de estímulos musicais diversos que se associassem ou não ao contexto do terror; dançar efeitos sonoros (zumbido de máquina de dentista, cacos de vidro sendo amassados, serra elétrica); deslocar o contexto de qualidades de movimento geradas através de um estímulo sonoro, ou seja, criar partituras por meio de um som e executá-las em um contexto em que não haja som ou em um contexto no qual as sonoridades sejam completamente diferentes das usadas para a criação da partitura.
Após o período de exploração de exercício, o processo de formatação da performance apresentada foi executado na busca de uma construção narrativa que agregasse parte dos materiais corporais encontrados e os inserisse no que eu consideraria uma atmosfera propícia para apresentação de aspectos aterrorizantes. No decorrer da disciplina no semestre, passávamos por uma série de conturbações políticas que aumentavam a sensação de insegurança em relação a princípios democráticos e institucionais de nosso país.
Em abril de 2016, houve a votação de impeachment da então presidenta, Dilma Rousseff, que a destituiu de um mandato legítimo e democraticamente conquistado. O golpe, que tinha como principal objetivo enquadrar o nosso país em uma agenda neoliberal, foi o início de um período sombrio que culminou em uma série de retrocessos de direitos trabalhistas, políticas de fomento à cultura, deslegitimização de direitos e discussões raciais, dentre tantos outros fatores. O cenário vivenciado naquele momento era o de incertezas, e me parecia propício levantar a discussão sobre o terror incitado por certas frentes políticas de cunho fascista. Foi então que decidi que a constituição narrativa da minha performance giraria em torno do evento político da votação de impeachment, tentando metaforizar as monstruosidades manifestas naquele contexto.
A partir dessa premissa, busquei encontrar formas de amalgamar os principais elementos corporais que eu havia explorado no decorrer do semestre e inseri-los numa ordem narrativa que não necessariamente seria linear. Assim como no exercício das partituras de Giselle Rodrigues, em que a sequência de movimentos se ressignifica de acordo com a forma com que é trabalhada dentro de uma estrutura narrativa e a partir de escolhas de qualidades de movimento, decidi encarar todo o material previamente produzido por mim como compêndios[1] a serem utilizados na performance apresentada.
Por fim, o experimento Danse Macabre foi constituído por uma narrativa na qual um monstro em cativeiro consegue atrair suas presas (plateia) para coagi-las no intuito de demonstrar seu domínio sobre elas. As portas do ambiente são falsamente trancadas e, à medida em que o tempo passa, algumas partituras corporais, em diálogo com objetos cênicos, sendo um dos mais enfáticos um facão, são apresentadas. A dinâmica é sempre alternada entre momentos de turbulência e calmaria. Os elementos cênicos apresentados procuram metaforizar processos políticos de coerção e uso do poder de forma violenta com o intuito de favorecer determinados grupos.
Num dado momento da apresentação, um áudio editado do processo de votação do impeachment começa tocar. A partir dele, inicia-se um ritual em que o personagem traja uma máscara de espantalho e toma posse de um facão. A plateia que, até então, estava sentada no centro do galpão dentro de um círculo de sal, vê o seu espaço sendo invadido pela criatura mascarada e armada. Os áudios da votação chegam num ápice de distorção de voz e volume até cessarem e o único ruído que se escuta é de uma interferência auditiva e do facão que, por vezes, é lançado ao chão ou na parede.
A repercussão desse solo na apresentação única feita no Painel Performático da Escola de Dança (2016) foi, para mim, uma grande surpresa, pois gerou uma série de reações, discussões e polêmicas. Pessoas choraram, algumas saíram antes da performance acabar, outras gritaram e, por fim, muitas delas, ao sair do teatro, se reuniram em pequenos grupos para discutir a experiência que tinham acabado de vivenciar.
Tive a possibilidade de ouvir diversos relatos de pessoas que assistiram à performance e me procuraram para compartilhar suas experiências, e algumas das repercussões me surpreenderam, pois desdobravam as discussões propostas em cena e alcançavam outras dimensões relacionadas a distintos aspectos políticos e sociais. Tive, por exemplo, a chance de ouvir o relato de uma colega que se disse muito angustiada e amedrontada, pois, de alguma maneira, a performance remetia à lembrança de parentes próximos que haviam sido torturados no período da ditadura militar. O personagem mascarado simbolizava, para ela, uma entidade que possuía relação com os torturadores dos seus familiares, já que um dos áudios que compunham a trilha sonora com a qual a entidade dançava, era do, naquela época, deputado federal (2016) Jair Messias Bolsonaro (1955), homenageando o ex-coronel militar e torturador, Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015). Essa mesma pessoa também disse que, ao chegar em casa no dia em que assistiu à apresentação, tinha lapsos ou flashes da imagem do personagem mascarado, o que lhe fazia ter medo.
Muitas pessoas relataram, também, o desconforto de acreditarem que estavam presas no teatro com uma pessoa desconhecida que portava um objeto cortante. Uma delas, inclusive, relatou-me uma experiência traumática que teve na infância nesse sentido, atestando que essa sensação foi rememorada ao se ver em uma situação de um possível enclausuramento. Houve aqueles que pautaram a relação entre dança e violência e os limites ou possibilidades que uma apresentação de dança que aborde essa temática poderia suscitar, bem como sobre as potências cênicas de um corpo em movimento abordando questões relacionadas ao terror e à política.
A partir daquele dia, por meio das diversas discussões que foram geradas depois da apresentação, tive a possibilidade de perceber as potências reflexivas e metafóricas que o terror como gênero artístico pode suscitar nos espectadores, seja por conectá-los a afetos que normalmente são evitados e quando emergem proporcionam uma reverberação conectada ao que foi apresentado, ou pela possibilidade de ressignificar situações políticas e apresentá-las sob diferentes perspectivas.
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[1] Esse termo será abordado mais adiante, neste capítulo.
A partir das experiências vivenciadas nas composições da performance Danse Macabre, começo a notar que a cenografia é um elemento fundamental que, comumente, dialoga com os meus processos criativos e me auxilia na elaboração de minhas composições de movimento corporal. Normalmente, quando eu tinha a possibilidade de criar um ambiente cenicamente convidativo para que as criaturas que eu criava habitassem, como o cenário com círculo de sal, incensos e partes do material que compunham a máscara espalhados no chão, novos caminhos corporais delineavam-se, apresentando diferentes modos do meu corpo lidar com aquele ambiente específico. Essa percepção foi um importante guia que me direcionou ao processo criativo do curta-metragem no contexto dessa pesquisa de Mestrado, pois me instigou a gerar cenários específicos para cada cena em que as explorações corporais pudessem acontecer. Esse sistema foi de fundamental importância por ajudar na guiança da narrativa do projeto e ao tecer as relações metafóricas com o Terror de Estado.
No último ano desta pesquisa de Mestrado, estive num processo contínuo de experimentação e aprendizagem sobre etapas de produção e execução de composições no Audiovisual. A maior parte das informações que tive acesso provinham de páginas na internet que se dedicavam a gerar conteúdo para profissionais ou aspirantes dessa área e que tinham como intuito propiciar informações para que cada indivíduo pudesse executar autoralmente suas produções. Estudei sobre equipamentos de iluminação de baixo custo, jogos de luz e sombra, índice de refração de luz, composição de iluminação para filmagem, captação de áudio para cinema, foley[1], acústica em gravações, dublagem de áudio, edição de áudio, edição de vídeo, color grading[2], chroma key[3] e muitas outras técnicas e áreas das quais pude assimilar, pouco a pouco, conhecimentos que me auxiliaram nas gravações do Curta-Metragem.[4]
Pude, também, verticalizar meus estudos no campo de criação do audiovisual, a partir dos trabalhos como monitor da CAAA-Coordenação de Ações Artístico Acadêmicas da Escola de Dança da UFBA[5] que, apesar de estarem voltados principalmente para área de design, motion design[6] e edição de vídeos, propiciaram-me um auxílio financeiro estudantil com o qual pude investir em 5 cursos online da Escola de Audiovisual Brainstorm Academy, para o aperfeiçoamento e estudo de programas, como: Adobe Premiere (edição de vídeos), Adobe Photoshop (edição e manipulação de imagens), Adobe Illustrator (criação de ilustrações), After Effects (criação de animação e efeitos especiais) e Color Grading (correção de cor). Ao todo foram, aproximadamente, 100 horas de aulas online, pelos cursos da Brainstorm Academy que, direta ou indiretamente, também auxiliaram no processo de construção do curta-metragem desta pesquisa. A partir dessas experiencias, tive, também, a oportunidade de, com parte do orçamento de monitor, comprar parte dos materiais usados para a gravação e edição do curta-metragem: refletores, microfone, materiais de aperfeiçoamento de notebook para a edição de vídeos e objetos cenográficos.
Após um período de dois meses de intensos estudos de produção audiovisual e da experimentação dos equipamentos, comecei a estruturar o espaço cênico onde se desenvolveria a maior parte da filmagem. Por uma série de questões pessoais no ano de decorrência dessa etapa da pesquisa, eu me encontrava na casa dos meus pais, em Brasília, ou seja, fora de Salvador, cidade onde eu residia na época. Devido ao fato de nesse período do ano ainda estarmos lidando com uma rotina remota, reflexo da pandemia da COVID-19, e pela minha impossibilidade de custear outras locações, assumi o desafio de fazer a maior parte das filmagens do curta-metragem em um dos quartos da casa dos meus pais. Para tanto, tive a oportunidade de retirar todos os móveis desse ambiente e modificá-lo com o objetivo de estruturá-lo em um miniestúdio de gravação.
O espaço do quarto era de, aproximadamente, 3 metros quadrados, o que limitava, consideravelmente, o campo de visão da filmagem e me obrigava a pensar em gravações que priorizassem os planos: detalhe e médio. A intenção era de conseguir explorar ao máximo a possibilidade de metamorfosear esse ambiente e transformá-lo por meio dos aparatos cênicos. Pude, então, criar uma estrutura de arame próxima ao teto que serviria como uma vara de iluminação, que também tinha a função de suporte para pendurar tecidos e objetos, caso fosse necessário.
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[1] Técnica de sonorização que consiste na gravação da sonoplastia de um filme ou vídeo, na pós-produção para aperfeiçoamento da qualidade sonora.
[2] Técnica de correção de cor de um material de imagem ou vídeo.
[3] Técnica de supressão do fundo de uma filmagem, a partir da inserção de uma cor padrão.
[4] Para aqueles que tiverem interesse, criei uma playlist contendo a maior parte dos conteúdos acessados por mim nesse período de aprendizagem, que pode ser acessada por meio desse link: https://www.youtube.com/playlist?list=PLOFEDJ2yYa_yK9aXO4AilyXSb1Z8gGdpp.
[5] Estive vinculado nesse projeto financiado pela Pró-reitoria de extensão (PROEXT) como monitor bolsista por meio da minha matrícula do curso de Licenciatura em Teatro que estava em andamento paralelamente ao Mestrado. A CAAA, neste período, estava sob a coordenação da Profa. Dra. Daniela Guimarães, também minha orientadora, o que expandiu a interlocução com minha pesquisa de Mestrado.
[6] Motin Desing é uma técnica que consiste na animação de peças gráficas em 2D ou 3D apresentando os elementos de uma imagem, sejam eles: textos, formas, personagens, objetos, entre outros, em movimento.
Os primeiros experimentos feitos nesse ambiente visavam um aperfeiçoamento técnico e reconhecimento das possibilidades que eu tinha dentro do espaço em junção com cada elemento de filmagem (iluminação, objetos, tecidos, entre outros). Era importante entender como os equipamentos recentemente adquiridos por mim funcionavam em diálogo com a câmera, o espaço e o meu corpo. Sendo assim, iniciei uma etapa de “brainstorm cênico”, na qual eu testava, de diversas formas, a relação do meu corpo com a luz e a sombra produzida, densidades de cores provocadas por diferentes intensidades dos refletores, junções de elementos externos para alteração de ambiências: como o uso de caixas de papelão para moldar o recorte da luz ou o uso de superfícies transparentes ou vazadas (vidros, plásticos, vasilhas, grades, arames, papéis), como filtros para a filmagem e iluminação.
Para que eu não me perdesse na criação de imagens aleatórias, um dos exercícios executados por mim era o de criar iluminações pensando em referências pré-selecionadas de filmes de terror. Com esse exercício de coleta de referências imagéticas, pude encontrar, pouco a pouco, algumas imagens que me entusiasmavam, pois me distanciavam do recinto do quarto e me apresentavam possibilidades de acessar diferentes atmosferas a partir daquele lugar.
Pensando na edição associada à experimentação, as filmagens feitas por mim eram seguidas de sessões de edição de vídeo, em que eu transferia as gravações daquele momento de experimentação para o computador e testava distintas formas de distorção ou aperfeiçoamento das imagens, alterando parâmetros de saturação e contraste, perfis de cor, transições, efeitos especiais básicos e inserção de trilhas ou efeitos sonoros.
Esse fluxo imediato de composição dos materiais, gravação e edição auxiliou-me a ter uma percepção mais ampla das diversas possibilidades de criação dentro do processo composição fílmica. Como eu não tinha outras pessoas responsáveis por me dirigir ou por monitorar o que estava sendo captado no enquadramento, a forma que encontrei de estudar o que estava sendo criado foi a de fazer um processo lento e pausado, no qual eu tinha que executar a função de vários técnicos ao mesmo tempo e ir parando para visualizar como aquilo funcionava na gravação. Assim, o fato de poder trabalhar nas imagens logo depois de gravá-las fazia com que eu tivesse a oportunidade de, naquele momento: repensar as minhas estratégias de movimentação ou de composição; tentar gravar mais alguns takes a partir das diferentes percepções e resultados que eu observava: e fazer diferentes adaptações de movimento antes de encerrar aquela sessão de criação.
Essa estratégia tem influência direta da análise feita no segundo capítulo sobre os estados de corpo das yureis, principalmente de Sadako, no filme Ringu (1998). O relato apresentado pelo diretor do filme sobre como foi editada a cena em que Sadako sai do poço, descrevendo o jogo de inversão da gravação do movimento da personagem e do corte de frames com intuito de interromper o fluxo contínuo das ações, motivou-me a pensar em diferentes estratégias de diálogo entre a movimentação e a edição de vídeo. Não afirmo, aqui, que o diretor fez o mesmo que eu, mas, ao ler sobre esse processo de intervenção na imagem descrita acima, suscitou-me o desejo de testar o que eu havia filmado, logo após, na edição. Isso se deu, também, como já dito, pelo fato de estar nesse fazer de forma solitária.
A edição dos experimentos feitos por mim poderia ser escolhida, tanto como estratégia assumida do meu produto final quanto mote de criação para a gravação de outras cenas em que eu buscava me conectar às sensações experimentadas por mim ao assistir ao material já editado, com o intuito de tentar reconstituir aquelas sensações sem o uso de efeitos da edição. Nesse sentido, foi interessante perceber que todo o processo de pré e pós-produção do filme servia como um guia que influenciava os caminhos pelos quais meu corpo ia percorrer, e, como em um jogo, delimitavam as regras com as quais eu teria que negociar para organizar a minha movimentação. Por isso, acredito ser importante trazer os relatos de algumas execuções técnicas, pois, apesar de que, a priori, possa não parecer, elas possuem aqui uma relação direta com a dança que se executa. E, ao me dispor no papel de diretor, cenógrafo, iluminador, contrarregra, editor e produtor de mim mesmo, pude reconhecer uma nova dinâmica de composição corporal influenciada por cada uma dessas áreas.
Ao mesmo tempo, não posso deixar de enfatizar que, apesar do meu empenho em tentar executar cada uma dessas funções, não tenho, até então, uma formação no campo do audiovisual que me propicie uma habilidade técnica para lidar com essas situações. Sendo assim, o meu processo foi executado de forma autodidata e do lugar de aprendiz, no que se refere aos aspectos de filmagem. O fato de não buscar parcerias que fizessem essas funções por mim se dava também por minhas impossibilidades financeiras de arcar com todos os custos de uma produção profissional. Essa restrição me levou aos conhecimentos acima elencados, por um fazer experimental que me trazia propriedade de criação e aprendizagens técnicas e intelectuais significativas entre Dança e Audiovisual.
Outra etapa importante de criação foi a de prospecção dos elementos dramatúrgicos que iriam compor a obra. Depois de ter tido contato com tantos livros, filmes, imagens, notícias, músicas e vivências pessoais que se relacionavam ao Terror de Estado, era necessário saber filtrar quais elementos seriam escolhidos para compor o mote central da discussão. Para mim, alguns princípios seriam cruciais para a composição da obra, como: uma obra que apresentasse segmentos do Terror de Estado por meio de narrativas desenvolvidas por personagens (cada qual diferenciado por uma específica dinâmica corporal); uma composição que se apresentasse convidativa, que fugisse dos hermetismos acadêmicos e estéticos ou que partisse de um anseio de ser reconhecida apenas por meus pares artistas e pesquisadores; algo que pudesse ser instigante, mas que, ao mesmo tempo, convidasse um público desinteressado pela temática para assistir; que tivesse uma abertura fulminante ou curiosa que encaminhasse para uma pista falsa que fosse capaz de criar uma inversão da forma do espectador de perceber a obra: algo que, de início, parecesse divertido, ingênuo, despretensioso, ao mesmo tempo que, em alguma medida, viesse o apoteótico e, logo depois, se apresentasse como terrível, malicioso, psicopático, macabro, horroroso; e, por fim, a engenhosidade técnica e dramatúrgica, por meio do uso de elementos metafóricos que fizessem parte da mitologia do universo do curta-metragem e que fossem usados de uma forma inusitada.
A lista de desejos apresentada acima tentava associar tanto as minhas inspirações artísticas quanto as redes dramatúrgicas que eu acreditava serem interessantes para pensar criticamente o Terror de Estado. O fato, por exemplo, de querer iniciar o curta-metragem apresentando um panorama oposto ao de um filme de terror, que, de alguma forma remetesse a algo divertido, tinha a intenção de chamar a atenção para a característica da branquitude de mascarar seus preconceitos, apresentando, sempre, uma argumentação moralizante que justifica suas intenções. A ideia de gerar essa oposição, a partir do desmascarar dessas atitudes, me instigava, dramaturgicamente, pois, se bem executada, poderia apresentar uma metáfora das obscenidades dessa branquitude. Essas características partiram, principalmente, da pista narrativa, pautada na relação entre oposição de atmosferas que o filme Clímax me suscitou. O jogo com a oposição narrativa parecia ser uma importante pista de como abordar as incoerências do Terror de Estado.
Existia, também, um anseio artístico pessoal de convidar os espectadores a se envolver com a obra e, não passivamente, assisti-la. Muitas vezes, questionei-me como poderia iniciar o curta-metragem, propondo um convite às pessoas espectadoras. Tenho consciência de que o processo de fruição de uma obra artística é expandido e de que não é possível ter o controle das sensações que serão produzidas por quem assiste. Posto isso, os princípios aqui abordados foram encarados, principalmente, como estímulos de criação narrativa, inspirados nas obras analisadas no segundo capítulo, ao invés de tentativas de regras cerceadoras de recepção.
Elencados esses elementos, busquei entender quais personagens poderiam me ajudar a apresentar os aspectos e estruturas do Terror de Estado relacionadas ao genocídio da população negra que em nosso país. A escolha desses personagens se deu a partir de muitas conversas que tive juntamente ao meu colega, Yuri Fidelis, o principal encorajador criativo desse processo.
O desafio de tentar compreender como operam os emaranhados de tentáculos[1] do Terror de Estado adquire mais profundidade na medida em que constatamos que esses organismos estão em constante movimento, reestabelecendo formas de organização a cada momento e se interligando com outros mecanismos de poder. Ao entrar em contato com a obra do jornalista e pesquisador Bruno Paes Manso, A república das milícias: Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro (2020), tive a possibilidade esboçar parte da estrutura de funcionamento desses mecanismos e traçar uma associação com a institucionalização do racismo no Brasil.
Na obra, Manso debruça-se sobre alguns fatos que buscam demonstrar como nasceram as milícias no Rio de Janeiro, de que maneira elas vêm operando atualmente, qual a sua relação com o estado (que, normalmente, se personifica por meio da polícia corrupta) e com o tráfico de drogas. Apesar dos fatos e estudos apresentados se concentrarem no Rio de Janeiro, muitas das informações apresentadas podem ser úteis para compreendermos como o estado se pronuncia ou interfere diante de determinadas ações e em que medida ele compactua ou endossa algumas delas, principalmente quando se tratando de comunidades majoritariamente negras e periféricas.
A forma como Manso (2020) escolhe narrar e apresentar esse assunto constrói sempre um paralelo entre estado, milícias e facções do tráfico de drogas. Isso me instiga a perceber a relação entre os três setores como constituintes de uma cadeia de movimentos, no sentido de que cada segmento está conectado fazendo com que as ações de um reverberem em ambos. A partir de suas análises, também é enfatizada a concepção de que milícias e tráfico existem fundamentalmente a partir da omissão do estado. Ou seja, onde o estado não intervém, outros grupos, munidos de armas e dispostos a praticar a violência a qualquer custo em prol do próprio poder, surgem promovendo ações que, a priori, deveriam ser administradas pelo estado. Sob essa perspectiva, Manso (2020) discorre:
Tais grupos passaram a travar disputas entre si, na tentativa de cumprir em suas áreas de atuação o papel que o Estado brasileiro não parecia capaz, que seria o de garantir, pelo monopólio legítimo da força, a formação de uma autoridade que impusesse a todos o respeito às regras locais. Durante o período democrático, com a propagação desses grupos armados, o Brasil se tornaria o país com a maior taxa de homicídios no mundo, mesmo sem estar envolvido em guerras, conflitos civis, étnicos ou religiosos (MANSO, 2020, p. 11).
Essa omissão pode ser percebida sob vários aspectos que beneficiam interesses econômicos privados, como em esquemas de corrupção e ligação de agentes públicos com o tráfico de drogas, com currais eleitorais de regiões milicianas, ou até mesmo como uma herança da escravidão estruturalmente mantida para marginalizar parcelas da população e, constantemente, esgotar os seus recursos básicos de sobrevivência. É como se a omissão estratégica do estado gerasse uma série de sintomas ou doenças que, concomitantemente, o estado fosse tentando “medicar”, ou encenando uma medicação, usando a polícia. Um ciclo vicioso sem fim, já que um grande percentual da polícia e até mesmo do exército faz parte dos mesmos esquemas de corrupção que alimentam esse sistema. Vide a questão do tráfico de armas, em seu livro, Manso (2020) nos apresenta os dados que demonstram que 20% das armas apreendidas pela polícia em ações nos morros do Rio de Janeiro em 2019 pertenciam ao exército brasileiro:
O desvio de armas e munições da própria polícia para os criminosos que eles combatem pode parecer, à primeira vista, incongruente ou suicida. No entanto, era esse mercado que azeitava a engrenagem da guerra que fortalecia a polícia. Por um lado, se as armas e munições de calibre pesado traumatizavam a população da cidade, por outro, ajudavam a transmitir à população a ideia de que os policiais e as forças de segurança eram imprescindíveis para combater o caos e a desordem no Rio. Os fuzis nos morros sempre ajudaram a dar veracidade e dramaticidade ao teatro da guerra cotidiana contra o crime, colaborando para consolidar o status da polícia como fiadora da vida do carioca. É justamente esse status que intimida os governantes e os faz não querer enfrentar os riscos de iniciar reformas modernizantes e moralizadoras, que interrompam os diversos negócios criminosos que locupletam muitos policiais do estado. Portanto, a existência de armas e munições pesadas nas mãos dos criminosos, parte delas vendidas por militares, acaba criando na população e nos governantes a sensação de que, mais do que nunca, dependem das forças policiais estabelecidas para defendê-los (MANSO, 2020, p. 117).
Ao pensar nessa lógica de ações, cada vez mais consigo conectar os pensamentos da ideia de medo e esperança como aspectos políticos centrais apresentadas no primeiro capítulo dessa Dissertação. O estado, desempenhando esta função necropolítica, por meio de artifícios que poderiam ser considerados provenientes de uma dramaturgia, criando uma situação falsa em que se aparenta haver um combate, apenas para justificar a existência da polícia, visando o fomento de um mercado ilícito e lucrativo.
Foi muito intrigante para mim entender que a forma de organização, principalmente das milícias e facções criminosas, tem uma semelhança tremenda com o funcionamento de uma empresa corporativa que tem como objetivo principal o lucro e, para tanto, constrói normas de conduta, emprega funcionários, institui uma divisão hierárquica, delega funções, coopta espaços físicos de funcionamento, produz seu networking[2] e negocia com seus contratantes.
Ao ler A república das milícias: Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro (2020), minha visão em relação ao Terror de Estado se expandiu a ponto de ter certeza de que a complexidade desse sistema não se esgota, e apesar de, a priori, parecer que o estudo sobre o esquema de milícias ou sobre facções criminosas seja um desvio de foco do Terror de Estado, penso que há um entremeado complexo entre essas organizações. Os estudos dos sintomas provocados por esse sistema me ajudaram a compreender como chegamos no cenário político atual (2021), resultado de uma eleição presidencial, posterior a um golpe de estado, que nominou um conjunto de representantes que possuem ligação direta e apoio ao sistema de milícias ao incentivo do armamento da população e da vingança pelas próprias mãos como justificativa de um bem comum. Isso não significa afirmar que o Terror de Estado tenha nascido nos últimos anos, mas constatar que o que estamos vivendo são manifestações cada vez mais escancaradas de defesa de um sistema que é, perceptivelmente, organizado em função de uma necropolítica.
Essas reflexões foram importantes, uma vez que me auxiliaram a elencar alguns personagens que pudessem me ajudar a desenvolver uma narrativa que evidenciasse alguns aspectos desse universo ao do terror como gênero artístico. A seguir, apresento os personagens escolhidos.
O burocrata/político/capitalista: homem que resolve as questões através da papelada, do dinheiro, das assinaturas. Figura responsável por interferir, intelectualmente, nos setores públicos e por fomentar, logisticamente, a perpetuação da hegemonia de poder econômico. Representa a dinâmica executiva da branquitude, que encomenda as mortes e suja as próprias mãos assinando decretos, papeladas, documentos, desviando dinheiro e delegando funções. Sua parte no pacto é a de encabeçar os crimes e construir mecanismos de defesa que partam do âmbito legislativo.
O policial: simbolizando a polícia corrupta que não mede a violência e esconde os rastros de seus delitos, o setor do estado que utiliza, de forma mais evidente, a violência física e moral que retrata um contexto tanto militar quanto civil, ambos submetidos a uma lógica de poder hierárquico. O policial funciona dentro da dramaturgia como um carrasco que executa e acoberta o assassinato de suas vítimas. Ao trabalhar com essa figura, o objetivo é o de apresentar como, institucionalmente, a violência adquire uma faceta que tem o aval de matar independente de qualquer fator. Pensar em parte da polícia ou do exército como lacaios do estado que promovem dia e noite os assassinatos da população negra tem relação com o fato de estarmos sempre diante de uma instituição que assume o papel de protetora social, mas que, efetivamente, boicota sua função e direciona a sua proteção em prol da branquitude.
O civil: homem que se apresenta como protetor da família e dos valores cívicos, morais e religiosos. A afirmação da masculinidade rege os seus preceitos patriarcais. Na narrativa, ele é aquele que consome conteúdo de violência explícita e compartilha essa violência pelos meios de comunicação, endossando as atitudes de crueldade do estado, influenciado, também, pela lógica dos Colecionadores Atiradores Caçadores- CAC’s: luta em defesa do porte de armas para civis. E, por fim, a criatura sobrenatural que remete a um passado escravagista e corrobora com as ações dos demais personagens.
A escolha desses quatro personagens parte da necessidade de uma síntese de apresentação dos mecanismos de estruturação do Terror de Estado, pensando em como essas figuras corroboram para o agenciamento de uma necropolítica. A constatação de que o sistema que rege esse genocídio é composto por diversos segmentos sociais me levou a buscar por aspectos relacionados a uma dimensão intelectual (o boracrata), física (a polícia), de massa (no sentido de um conjunto ampliado de civis que endossam o uso da violência como forma de controle de poder) e histórico (a criatura sobrenatural). No contexto do curta-metragem, essa divisão de personagens me trouxe a possibilidade de abordar a complexidade do tema com um foco nas características específicas provenientes dos ambientes por onde esses personagens poderiam habitar e, por conseguinte, essas pistas auxiliaram nos processos de criação de partituras corporais e improvisações, como será abordado nos tópicos a seguir.
3.3 CORPOLUMEN: redes de estudos do corpo, imagem e criação em dança
Cada um dos personagens me dava pistas dos compêndios de referências estéticas sobre os universos que cercam as suas figuras, e, a partir desses compêndios, eu pude ir associando elementos relacionados a cada um deles para a criação de um storyboard do filme. Dessa maneira, mesmo que, em termos de movimentação corporal, eu ainda não soubesse qual seria o destino de cada personagem, eu saberia em que tipo de cenário e enquadramento ele estaria inserido, e isso me trazia pistas também corporais. Tendo o cenário pronto e o enquadramento fixado, eu estaria livre para explorar as possibilidades de criação de movimentos e estados corporais, alimentado por toda uma construção conceitual e estética prévia. Essa estratégia partiu tanto da minha experiencia nos encontros do IMPROlab-CORPOLUMEN[3] como a partir dos métodos de criação do grupo Peeping Tom, que abordarei mais adiante.
O jogo da movimentação se iniciaria a partir das “regras” pré-estabelecidas do cenário e da iluminação. Essa foi a forma que encontrei de conseguir me organizar dentro do caos de exercer várias funções ao mesmo tempo. Mesmo que paralelamente a esse processo eu estivesse desenvolvendo explorações corporais, nenhuma delas era desenvolvida, a priori, para nenhum personagem específico ou objetivando a relação com alguma metáfora. Elas apenas iam sendo adicionadas pouco a pouco ao meu compêndio de possibilidades e, depois, poderiam ser pinceladas por um ou outro personagem para compor a sua matriz de movimentos. Sendo assim, apenas com os cenários e figurinos montados, eu conseguia desenvolver um campo fértil para que cada personagem pudesse habitar, e, a partir daí, ir experimentando e selecionando os elementos dos compêndios de partituras criados anteriormente.
Exercícios esses que se intensificaram a partir das experiências vivenciadas por mim no grupo de pesquisa CORPOLUMEN: redes de estudos de corpo, imagem e criação em dança, onde me refiro principalmente à disciplina Criação fílmica na interação dança e audiovisual e aos encontros no ImproLAB-CORPOLUMEN[4]. Essas duas experiências coordenadas pela líder do grupo de pesquisa, Prof.ª Dr.ª Daniela Bemfica Guimarães, reelaboraram a minha forma de construir e pensar a relação entre Corpo e Câmera no contexto audiovisual.
Em resumo, as experiências no grupo foram profícuas, principalmente no que tange a discussão de temas relacionados ao estudo da linguagem audiovisual e às potencialidades que o corpo em movimento, no contexto da Improvisação em Dança e em tempo-real, proporciona. Desde o início do Mestrado, estive acompanhando os encontros semanais ou quinzenais do Grupo de Pesquisa CORPOLUMEN, do qual sou parte. No primeiro semestre de 2019, várias sessões de Improvisação Cênica em tempo-real foram elaboradas em encontros presenciais no teatro Experimental da Escola de Dança da UFBA, e, nelas, tivemos a possibilidade de ter acesso a técnicas de Contato-Improvisação, experimentações em grupos, apresentações cênicas e discussões teóricas, sempre experimentando com improvisadores na música ao vivo e na iluminação, também criada em tempo real.
Já no ano de 2020, as reuniões do GP CORPOLUMEN, aconteceram no contexto da pandemia do Coronavírus, e tivemos a chance de dialogar, por meio de encontros quinzenais de Improvisação Cênica em tempo real, por meio da plataforma Zoom. Nesses encontros, pude compartilhar alguns dos estados de corpo que eu vinha desenvolvendo para o curta-metragem através de experimentações individuais e compreender com mais afinco questões relacionadas à produção de movimento para a câmera e à possibilidade de relação entre estudos de movimentos e filmagem. De acordo com relação dos estudos de Improvisação Cênica em tempo real e Criação Fílmica (relação Dança e Cinema), a Profa. Daniela Guimarães testava sua pesquisa (GUIMARÃES, 2020)[5] .
Em resumo, os experimentos produzidos nesses encontros aguçaram o meu olhar de composição cênica que começou observar não apenas a forma como o meu corpo se movia, mas em quais tipos de escolhas técnicas eu poderia fazer para dar a ver esse corpo em movimento, seja por escolhas de enquadramento de câmera, paletas de cores do cenário e figurino, iluminação, criação de sonoplastias/efeitos sonoros e até mesmo na edição de vídeos, no caso da disciplina de Criação fílmica.
Um dos procedimentos que tenho desenvolvido nesse sentido, já apresentado brevemente em alguns parágrafos anteriores, organiza-se de forma semelhante a um quebra-cabeças. Para construir as cenas dos meus experimentos, tenho trabalhado na criação de um compêndio de estruturas cênicas que englobam a atmosfera pretendida para cada situação. Sendo assim, trabalho a partir das principais referências que acredito que possam fazer parte da estruturação de cada cena. Passo por uma etapa de construção de elementos cenográficos e corporais a partir do material referencial, aperfeiçoando assim esse compêndio. Posteriormente, todo o material é experimentado em um entrecruzar de combinações. Esse modo de trabalho é inspirado principalmente pelas minhas vivências no Grupo de Pesquisa CORPOLUMEN, no qual Daniela Guimarães desenvolve uma condução que parte da criação de compêndios para a estruturação de improvisações em tempo real. Esse conceito é usado por ela para tratar dos elementos que vão sendo selecionados pelos improvisadores durante as experimentações:
Compêndio é o armazenamento de informações percebidas no fazer e na observação da prática improvisacional de uma determinada obra. O compêndio é construído no percurso. Uma espécie de catálogo de arquivos, repertórios de estratégias, conhecimentos elucidados durante a pesquisa. Um espaço sempre aberto e pessoal, que abriga e estimula o fascínio de fazer descobertas. É composto pelos estudos do corpo, leituras e discussões teóricas, conceitos aplicados, por observações individuais no universo cotidiano, por textos desejosos de fala, reflexões e percepções adquiridas na prática dos diferentes jogos (GUIMARÃES,2012, p. 142).
Embora no caso dessa pesquisa o compêndio não esteja sendo usado num contexto de improvisação em tempo real, como apresentado por Guimarães, ele é utilizado como estrutura essencial para o decorrer do processo de criação do curta-metragem. Essa estrutura tem me auxiliado na maneira de encontrar variadas metáforas relativas ao Terror de Estado num fluxo bidirecional, ou seja, as metáforas não são necessariamente pensadas previamente e construídas a partir de uma concepção anterior aos experimentos, elas também surgem no processo de experimentação e improvisação com os elementos cenográficos. Sendo assim, as construções cênicas e conexões de referenciais teóricos do Terror de Estado também vão sendo elaboradas na prática da dança. Tal escolha tem se demonstrado interessante no contexto dessa pesquisa, pois uma das maiores dificuldades encontradas por mim tem sido a de abordar a multiplicidade de mecanismos e estruturas complexas que se relacionam e compõem o Terror de Estado no Brasil. Delinear uma narrativa prévia que englobasse toda essa complexidade sempre foi um grande dilema para mim, e a maneira que tenho encontrado de lidar com esse dilema tem sido a de proporcionar atmosferas cênicas nas quais diferentes tipos de estados de corpo monstruosos podem ser habitados.
Essa estrutura de trabalho, além de ter sido influenciada pelo Grupo de Pesquisa CORPOLUMEN, também se fundamentou depois do contato que tive por meio de leitura dos processos de criação do Grupo Peeping Tom. O aparecimento do trabalho do Peeping Tom se deu por uma recomendação da banca no processo de Qualificação dessa Dissertação. A partir daí, meu interesse por seus processos de criação foi aumentando na medida em que eu ia descobrindo novos vídeos dos espetáculos do grupo e percebendo as relações com a maioria dos aspectos que eu vinha investigando sobre Dança e Terror. Foi, então, que entrei em contato com o grupo pelo site[6] do Peeping Tom e me foi cedido acesso, para fins de investigação acadêmica, à gravação de três espetáculos: 32 rue Vandenbranden (2009), Moeder (2016) e Le Salon (2004).
Tive, também, a possibilidade de entrar em contato, via redes sociais, com uma das bailarinas do grupo: Maria Carolina Vieira, brasileira e que, além de, solicitamente, me apresentar alguns outros materiais, compartilhou comigo sua Dissertação de Mestrado, cujo título é: Nas entrelinhas do corpo e do movimento: a experiência do dançar nas companhias Grupo Cena 11 CIA. De Dança e Peeping Tom Company (2014), que apresenta muitos elementos dos processos de criação de cada uma das companhias. O contato com tantos materiais preciosos auxiliou no desenvolvimento prático da minha pesquisa, pois os fundamentos de procedimentos de criação expostos na Dissertação de Vieira (2014) propiciaram-me insights criativos que, posteriormente, inseriram-se na minha rotina de ensaios. Na próxima subseção desta Dissertação, pretendo apresentar o grupo e relatar os fundamentos de criação expostos por Vieira, associados ao material de gravação aos quais tive acesso, e como estes acessos influenciaram em meu processo de criação de partituras do meu filme e na escrita desta pesquisa.
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[1] Uso, aqui, o temo tentáculo, no intuito de trazer a referência do monstro marinho, Leviatã, referenciado na obra homônima de Thomas Hobbes (1588-1679), traçando um paralelo entre o monstro e as estruturas que compõem o Terror de Estado. O temo tentáculos também foi muito utilizado por mim durante o processo de criação, pois me ajudava a visualizar imagens que pudessem metaforizar a complexidade dos pilares do Terror de Estado.
[2] Termo em inglês usado para designar a criação de uma rede de contatos.
[3] O ImproLAB-CORPOLUMEN é um projeto cadastrado na Proext - Pró Reitoria de Extensão da UFBA desde 2018, e sua ação remota e online se inicia em agosto de 2020, no SLS - Semestre Letivo Suplementar, por meio do Programa de Extensão do Grupo de Pesquisa CORPOLUMEN: redes de estudos de corpo, imagem e criação em Dança [...]. Na versão remota e online, o toque do outro abriu espaço para o toque no próprio corpo, no chão da casa, suas paredes e objetos. A prática de Contato-Improvisação abriu-se para a relação entre corpo, espaço-casa, tempo-tela e câmeras – quando o toque toma outra dimensão, bem como as tomadas de decisão, as escolhas em tempo-real, a escuta, a interação dos corpos, a relação dança e composição ao vivo, a relação entre corpo e música, entre outros tantos aspectos se modificaram nesta nova condição de ensino, criação e compartilhamento: extensão ampliada, fronteiras alargadas. Disponível em: <http://www.corpolumen.com>. Acesso em: 20 jun. 2021.
[5] Relatos de Profa. Daniela Guimarães durante as aulas do Improlab-CORPOLUMEN (2020).
[6] Disponível em: < https://www.peepingtom.be/en/about-peeping-tom/the-company>. Acesso em: 18 mar. 2022.
O Peeping Tom é uma companhia belga de Dança-Teatro, fundada no ano 2000 pela diretora argentina e bailarina, Gabriela Carrizo, juntamente com o diretor e bailarino francês, Franck Chartier, ambos haviam dançado juntos na companhia Les ballets C de la B do coreógrafo Alain Platel, antes de fundarem o grupo. Seus trabalhos de composição normalmente buscam dissolver as bordas que delineiam as áreas de Dança e Teatro, conjugando um elenco tanto de bailarinos como de atores e cantores. De 2000 até 2022, já receberam 16 prémios por suas obras, dentre eles o Prêmio PRIX (FR), de melhor espetáculo de dança (2005), o prêmio Folha de São Paulo (BR), de melhor espetáculo de dança (2013), e o prêmio de melhor produção de Nova Dança (Best new dance production,) pelo Olivier Awards de Londres (UK). Sua relação com temáticas bizarras e grotescas parece estar ligada a um aspecto voyeurístico da cena, como uma tentativa de apresentar ao público àquilo que, a priori, não poderia ser visto, mas que, entre quatro paredes, manifesta-se de maneiras inimagináveis. Segundo eles:
Tudo no trabalho do Peeping Tom começa a partir de um cenário hiperrealista. O espaço é familiar, tal como um jardim, uma sala e um porão [...]. Os criadores então quebram esse realismo. Eles criam um universo instável que desafia a lógica do tempo, espaço e atmosfera. O público se torna a testemunha - ou melhor o voyeur ? - do que normalmente permanece escondido e não dito. O isolamento conduz a um mundo inconsciente de pesadelos, medos e desejos, que os criadores usam habilmente para lançar luz sobre o lado escuro de uma personagem ou de uma comunidade. O "entre quatro paredes" de situações familiares permanece para o Peeping Tom uma grande fonte de criatividade[2](Tradução minha) (PEEPINGTOM, 2022, p.1.)
Nesse pequeno texto de introdução encontrado no site da companhia, vários aspectos compositivos relacionados ao terror se evidenciam: a quebra do realismo associada a um jogo de subversão da lógica do tempo e do espaço; a atmosfera cênica inspirada no inconsciente fazendo emergir circunstâncias relacionadas ao medo; e a ideia de apresentar a obscuridade de cada personagem, trazendo à tona um aspecto obsceno daquilo que não deveria ser visto, mas que é apresentado num jogo voyeurístico do público. Ao entrar em contato com esse texto e com as obras do grupo, o interesse em entender como funcionavam os processos de criação de seus espetáculos foi aumentando: uma forma muito direta eles se relacionam aquilo que almejo enquanto dou segmento a essa pesquisa.
[1] Disponível em: < https://homemcr.org/production/32-rue-vandenbranden/>. Acesso em: 12 jul. 2021
[2] Everything in Peeping Tom's work starts from a hyperrealist setting. The space feels familiar, such as a garden, a living room and a basement [...]. The creators then break open this realism. They create an unstable universe that defies the logic of time, space and mood. You become the witness - or rather, the voyeur? - of what usually remains hidden and unsaid. Isolation leads to an unconscious world of nightmares, fears and desires, which the creators deftly use to shed light on the dark side of a character or a community. The huis clos of family situations remains for Peeping Tom a major source of creativity. Disponível em: <https://www.peepingtom.be/en/about-peeping-tom/the-company/>. Acesso em: 16 jun. 2022.
A forma do grupo de abordar as situações cotidianas me instiga a pensar nas possibilidades cênicas de interpretação de uma situação e sua relação com a obscenidade. Isso, pois, ao escolherem o desconhecido ou o não dito como motes de ação, está, de alguma maneira, exercitando um jogo de evidenciação daquilo que se procura esconder, mas que, inevitavelmente, denota-se, ou como mencionado na introdução dessa Dissertação a partir da ideia de Teixeira Coelho, aquilo que por apego à vida temos medo de jogar em cena, mas que está lá. Ou seja, algo obsceno que, a partir da lente de aumento do Peeping Tom, é trazido à tona, de forma a enfatizar a estranheza das situações, o que de inquietante pode se manifestar em algo que não deveria estar sendo visto.
Nesse sentido, há uma intrigante construção narrativa que suscita o corpo a se manifestar de maneira não usual, grotesca e estranha, enfatizando as facetas mais incomuns dos tabus de determinadas situações. Essa lógica de pensamento se assemelha ao que venho articulando ao trabalhar com o Terror de Estado, na tentativa de apresentar, de forma inquietante, o que de obsceno concerne a essa temática, fazendo com que as facetas obscuras das situações relativas a essa questão se manifestem corporalmente de forma grotesca flertando com aspectos cênicos aterrorizantes.
Um dos fundamentos apresentados por Vieira em sua Dissertação, que me auxiliaram no processo de criação do curta-metragem, diz respeito à relação entre o corpo e o espaço onde se dança: o cenário. Nos relatos de Dissertação, a bailarina descreve a importância que os elementos cenográficos adquirem no processo de criação de partituras corporais, sendo que, normalmente, nos processos criativos do grupo, essas etapas de criação se dão em um espaço onde já está montado um protótipo do cenário final da obra, ou seja, os bailarinos/atores constroem suas movimentações cientes das possibilidades de ação que aquele espaço possibilita. Sobre esse procedimento, a bailarina descreve:
Franck Chartier relatou-me que cada situação e cena num primeiro momento parte das características propostas pelo cenário. O cenário é um elemento fundamental para as criações do Peeping Tom, é o primeiro elemento e imagem em todas as peças, dando os parâmetros iniciais para criar as cenas, as situações, os personagens e os movimentos das coreografias. Dessa forma, a relação entre cenografia e corpo é um importante ponto concernente à coreografia e à dança-teatro do Peeping Tom. Em outra entrevista concedida por Gabriela Carrizo à companhia Nederlands Dans Theater, a diretora explica como surge o interesse pela cenografia para criar as situações nos espetáculos. Ela afirma “As ferramentas que usamos são muito próximas do cinema. É como criar uma atmosfera criando o espaço e então podemos atravessá-lo, e atravessando essa fisicalidade, falar sobre a realidade, falar sobre pessoas, mas do que somente mostrar o virtuosismo de um bailarino” (VIEIRA, 2014, p. 135).
A relação de simbiose entre o corpo e o espaço instiga-me a pensar em processos de composição na dança, pois apresentam delimitações físicas e imagéticas com as quais o corpo terá que lidar. A partir de determinado espaço pré-elaborado, é possível analisar as possibilidades de interação do corpo com as regras que aquele ambiente propõe, como em um jogo. Com influência também desse aspecto dos processos de criação do Peeping Tom, a construção de cenários para as cenas do curta-metragem partia da ideia de que seria possível criar atmosferas em que cada personagem pudesse habitar, e as regras partiam da noção de que cada um desses ambientes proporcionariam uma relação com cada personagem e vice-versa. Enfatizando que, a partir do momento em que iniciei os experimentos de filmagem para a montagem do compêndio de gravações, foi possível começar a entender e aprofundar a ideia de quais cenários poderiam instigar a movimentação de determinados personagens e como a relação desses personagens com a câmera e a cenografia poderiam acontecer.
Vieira (2014) também apresenta alguns princípios que regem os processos de criação das partituras corporais dos espetáculos do Grupo Peeping Tom. Tais princípios surgem como elementos basais de exercícios com os quais os bailarinos são instigados a jogar, gerando, então, uma série de experimentações que, posteriormente, são selecionadas e trabalhadas para compor o material bruto de cada partitura. A restrição é o primeiro princípio abordado por ela em seus relatos, e tal abordagem me propõe diversas pistas para o desenvolvimento dos meus procedimentos de criação. No relato a seguir, Vieira (2014) descreve a base desse princípio e alguns exemplos de como ele foi utilizado na audição em que ela foi escolhida para ser integrante do grupo.
O primeiro princípio de movimento, palavra-chave, que aqui cito é restrição (restriction). A restrição proposta para o exercício se dava de maneira física: “era preciso que com o próprio corpo criássemos uma restrição, ou bloqueio e se movimentar a partir dessa dificuldade”. Por exemplo, uma restrição poderia ser uma mão que segura um dos pés – a partir do momento em que a mão se conecta ao pé segurando-o, essas partes do corpo não podem mais perder o contato, formando, assim, uma restrição para mover o corpo no espaço. Era preciso criar movimentações a partir dessa restrição, isto é, possibilidades de mover o corpo usando-a como uma nova forma de ser do corpo. [...] As restrições faziam emergir esquisitices, estranhezas nos modos de mover o corpo das bailarinas presentes na audição, e essas esquisitices interessavam aos diretores, não somente como formas corporais inusitadas e estranhas, o que é de interesse investigativo do Peeping Tom, mas como um modo estranho de ser nesse novo formato (VIEIRA, 2014, p. 121).
É interessante notar o cuidado que se tem ao propor que a restrição não sirva apenas como um exercício de criação de formas estranhas, mas como uma possibilidade de acessar um novo modo de mover que é regido sobre diferentes lógicas de locomoção. Essa abordagem gerou, em mim, um insight importante para meu processo de criação, já que, muitas vezes, eu me atinha à ideia de criar formas corporais que achava que poderiam ser grotescas, pensando na forma pela forma, ao invés de analisar de que maneira o meu corpo poderia habitar as sensações produzidas na execução dessas movimentações e experimentar a persistência da exploração de diferentes maneiras de mover. A partir da busca por manter esse cuidado, pude, então, encontrar novas nuances de movimentação ao tentar aplicar esse exercício nos meus ensaios.
O princípio da restrição adentrou os meus processos de criação como uma experimentação de possibilidades inusitadas de construção narrativa por meio da movimentação corporal. Nos ensaios de cada cena, havia um tempo reservado para testar distintos tipos de restrições físicas dentro do cenário e enquadramento já estipulados. Havia duas lógicas de utilização desse princípio que regiam meus ensaios. A primeira delas era de pensar que o personagem lidava com a restrição como um fardo, uma possessão, ou seja, algo alheio a ele que encontrou uma forma de intervir no seu corpo. Nesse sentido, havia uma necessidade de apresentar o estranhamento do próprio personagem ao lidar com aquela condição física.
A segunda lógica de utilização desse princípio se aproximava um pouco mais da proposta do grupo de habitar uma nova sensorialidade, proposta pela restrição, como se a forma usual de agir daquele corpo fosse a forma proposta pela restrição. Essas duas maneiras de lidar com o mesmo exercício me auxiliavam a encontrar caminhos narrativos distintos que, posteriormente, eu pude ir selecionando para compor o material de partituras corporais escolhidas para a gravação
Um exemplo de execução desse aspecto nos meus experimentos é o da formação da máscara de dedos, que partiu de um desdobramento do princípio de restrição em que eu poderia me mover apenas com as mãos coladas ao meu rosto. Na medida em que eu explorava diferentes possibilidades de executar essa ação, encontrei uma disposição na forma de agrupar os meus dedos que me pareciam gerar duas pequenas pupilas ósseas nos meus olhos. Na tentativa de habitar essa restrição, investiguei como essa suposta criatura poderia se locomover, interagir e quais tipos de assimilações anatômicas eu poderia fazer por meio do que aquela máscara proporcionava. Cheguei à conclusão de que os braços poderiam funcionar como uma espécie de presa que, ao se fechar bruscamente, gerariam um ruído pelo contato entre as estruturas ósseas do cotovelo. E foi por meio do jogo de tentativas e repetições que cheguei à elaboração dessa partitura.
Outro elemento abordado por Vieira (2014) em seus relatos é o da contradição que, basicamente, constitui-se da ideia de direcionar diferentes partes do corpo em sentidos opostos, fazendo com que os vetores de movimento se contradigam.
A contradição proposta naquele momento se dava como uma forma de usar separadamente partes do corpo e por meio do seu direcionamento no espaço, isto é, cada parte para uma direção, criar relações de contradição. O trabalho do bailarino seria mover uma parte do corpo numa direção e outra parte do corpo para a direção contrária; os diretores nos diziam: “é como se uma parte do corpo quisesse ir para um lado da sala e outra quisesse ir para o outro” (VIEIRA, 2014, p. 122).
Apesar da descrição apresentada acima pela autora, relatar os aspectos técnicos desse princípio, a forma como ela o apresenta em sua Dissertação está relacionada a um contexto que me convidou, não a levar atenção apenas para a dinâmica de execução de seu princípio, mas a perceber diferentes perspectivas de se pensar em metáforas na dança. Segundo a autora, em uma das cenas interpretadas por ela no espetáculo 32 rue Vandenbranden (2013), a personagem tinha um conflito ao sair da casa onde vivia com seu marido, logo após ser questionada por ele se ela realmente sairia sozinha de casa. O conflito manifestava-se de maneira física, de modo que, ao se distanciar da casa, parte do seu corpo se direcionava até a casa e outra parte se afastava. A autora fomenta, então, uma discussão sobre as motivações criadas por ela para executar essa cena, pensando no contexto da personagem e as diversas leituras possíveis do público em relação às ações físicas executadas.
Essa discussão proposta por ela me chamou atenção pela possibilidade de gerar imagens que partem de explorações corporais, em que, não necessariamente, há que se sublinhar quais as intenções emotivas que perpassam a personagem. Ao invés disso, um jogo direcionado de explorações físicas expande as possibilidades de leitura e deixa margem para o público interpretar aquela cena da maneira que lhe convém. É como criar imagens porosas de interpretação para que espaços abertos sejam respondidos pela plateia. Me questiono se as metáforas também não poderiam emergir dessas porosidades, sem que necessariamente haja uma necessidade de querer significar algo com cada movimento executado. Ou seja, ao invés de pensar que determinadas ações serão feiras com o intuito metaforizar uma questão social específica, experimentar dançar as sensações, ou até mesmo as contradições das sensações que essa questão social suscita, já poderia ser uma tessitura interessante de composição.
Essa forma de lidar com as metáforas me motiva a pensar em que medida eu teria de buscar deixar óbvias as minhas questões com o Terror de Estado ou em que medida eu poderia exercitar o jogo de explorações com o meu próprio corpo, levando em conta que as pontes com o Terror de Estado já estavam sendo fomentadas.
Digo isso, uma vez que, num determinado momento desta pesquisa, houve uma preocupação muito grande em desenvolver cenas ou partituras que, necessariamente, estivessem relacionadas a algum mecanismo de estruturação do Terror de Estado, trazendo consigo a cansativa tarefa de buscar um sentido para cada movimento que fosse executado. Obviamente, esse jogo impedia que o processo de criação fluísse tranquilamente, pois, ao criar um compromisso com a produção de sentido ancorada no realismo, eu estancava as possibilidades de explorar caminhos que também pudessem ser interessantes. Ao invés disso, comecei a confiar que as leituras e apreciações de obras artísticas que eu estava fazendo me traziam propriedade para tecer conexões entre os temas investigados, por mim. A ponte entre o que estava sendo compreendido e o que estava sendo experimentado em improvisações era os personagens e os ambientes onde eles estavam inseridos (burocrata em um escritório, civil/CAC na sala de casa assistindo a um concurso de tiros, policial na cena de um crime, a criatura do passado escravagista brincando com os elementos de torturar). Eu poderia deixar que cada qual habitasse o seu cenário e propor uma série de exercícios corporais, dentre eles o da contradição, que, aos poucos, as conexões com as temáticas surgiriam sem que necessariamente eu tivesse que arquitetá-las antes de experimentar.
Outro princípio que rege os processos de criação do grupo se relaciona ao uso exacerbado da flexibilidade física com o intuito de gerar o estranhamento. De acordo com Vieira (2014), a companhia investe na característica de flexibilidade do corpo como uma qualidade propiciadora de possibilidades esquisitas, em que o direcionamento do modo de operar a flexibilidade é fundamental para trazer a qualidade freak[1] ao corpo e à cena (VIEIRA, 2014).
Tal aspecto do modo de lidar com as questões anatômicas do corpo humano também é comumente trabalhado em criaturas de filmes de terror. O excesso de flexibilidade é apresentado como fator de monstruosidade justamente por deslocar a estrutura física anatômica de seu estado cotidiano, apresentando, muitas vezes, o esgarçamento da amplitude de certos movimentos e possibilitando uma característica tão fora do comum que inverte a lógica de movimentação.
Esse princípio pode ser observado em diversas criaturas icônicas de filmes de terror, como apresentado nas imagens abaixo. Até mesmo quando a Cultura Pop decide parodiar ou partir da inspiração desses filmes para a criação de cenas de comédia, o uso da flexibilidade física exacerbada é um dos elementos comumente enfatizados. Obviamente que, quando partem do universo Audiovisual, muitos aspectos técnicos de efeitos especiais estão envolvidos para que a flexibilidade transpasse os limites humanos, mesmo que, em alguns casos, as bases de movimentações partam de atores contorcionistas e, posteriormente, sejam trabalhadas com computação gráfica, como é o caso da criatura de O Chamado (2002), que é interpretada pela atriz e contorcionista norte americana, Bonnie Morgan (1981).
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[1] Freak é uma palavra da língua inglesa que, normalmente, é utilizada como referência para algo fora do comum, estranho ou grotesco.
Apesar de esse ser um princípio que carrega muitas pistas de como gerar estranhamento por meio da movimentação corporal, não foi um aspecto muito explorado nos experimentos que executei no decorrer desta pesquisa. Ao invés disso, minhas tentativas vinham ao encontro da necessidade de lidar com a minha falta dessa flexibilidade física, e tentar encontrar outras maneiras de proporcionar o estranhamento.
Desde o início do meu processo de formação em Dança, a questão da falta de flexibilidade física esteve presente como uma condição com a qual tive que aprender a lidar. Partes da musculatura posterior do meu corpo possuem um encurtamento que não me possibilita a execução de uma série de movimentos, como o de encostar os dedos das mãos nos pés com facilidade, enquanto alongo a musculatura posterior das pernas. Várias foram as minhas tentativas de me desvencilhar dessa condição, dentre elas: treinamentos diários e intensos de alongamento, consultas com quiropatas, treinamentos de pilates e yoga, sessões de acupuntura. Todas essas no intuito de compreender e tentar desenvolver maior flexibilidade. Essa questão me levou, inclusivemente, a desenvolver uma pesquisa de iniciação cientifica intitulada A Criação de uma Linguagem Expressiva na Dança que Perpassa os Limites da Flexibilidade (2014).
O desenvolvimento desse PIBIC[1] me possibilitou a compreensão de que a minha falta de flexibilidade não deveria ser encarada como uma limitação, mas como uma condição com a qual eu teria que lidar para poder dançar.
Nesse sentido, pude perceber que a perspectiva com a qual enxergo a minha própria falta de flexibilidade poderia me auxiliar no trabalho de desdobramento da mesma. O uso do termo “condição” me auxiliou a fazer uma ponte com a estrutura de regras de jogo, isto é, a condição do meu corpo poderia ser tratada como uma espécie de regra no ato de jogar/dançar. Noto que a falta de flexibilidade em um sentido metafórico, funciona como essas condições que não impedem o movente de explorar a suas potencialidades, mas sim proporcionam outros caminhos para que ele possa desenvolver o seu próprio material criativo (MOURA, 2014, p. 6).
A percepção que adquiri da minha própria forma de me mover durante essa pesquisa me auxilia, ainda hoje, a não criar autossabotagens que me impeçam de alcançar algum objetivo no ato de dançar. No âmbito do desenvolvimento do curta-metragem pude então perceber que não seria necessariamente uma questão de flexibilidade física que me impediria de gerar estranhamentos a partir da minha movimentação. Ao invés disso, me ative a possibilidade de gerar artifícios cênicos que pudessem ser trabalhados na edição, onde eu poderia alterar a anatomia do meu corpo e desenvolver minhas próprias criaturas.
Na figura 69, é possível ver uma das cenas do curta-metragem em que o homem de duas cabeças assiste à televisão. A ideia dessa imagem é a de proporcionar um deslocamento de sentido por meio de uma estrutura física improvável. O processo de execução dessa cena se deu por meio da gravação de duas cenas separadas que foram posteriormente recortadas e sobrepostas gerando a sensação de que os pés do personagem são, na verdade, outra cabeça. Dessa maneira, o jogo da bricolagem associado à lógica da edição de vídeo foi uma escolha que me permitiu encontrar meus próprios caminhos compositivos para a estruturação de cenas.
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[1] Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Cientifica (PIBIC).
As pistas que os principais referenciais teóricos desta pesquisa ofereceram estavam relacionadas, principalmente, à concepção de que o terror, como gênero artístico, trabalha a partir de uma atmosfera contextual, que pode estar ligada a uma narrativa, a elementos cenográficos, a símbolos, todos esses auxiliando na criação de uma atmosfera para que a movimentação corporal também adquira uma possibilidade aterrorizante. Essas pistas conduziram as experimentações a serem produzidas em laboratórios cênicos, onde eram explorados exercícios de improvisação em dança associados a elementos cenográficos que compunham uma atmosfera. Essa foi a estratégia encontrada para conseguir investigar possibilidades narrativas de conexão com o Terror de Estado brasileiro, produzindo, assim, um campo fértil para elocubrações de uma alegoria política na cena. Os recursos de fusão, fissão magnificação, metonímia e massificação estiveram presentes nessas etapas como possibilitadores criativos associados ao compêndio com os quais eu poderia jogar à medida em que me parecesse interessante. Outras pistas, como a quebra de fluxo de movimentação que não se ancora em uma lógica linear, saltos temporais, repetição, uso de sonoridades diegéticas e extradiegéticas, também foram essenciais, quando consideradas nos processos de criação.
As experiências dos diversos processos de criação descritos acima compõem os principais procedimentos elencados por mim com o intuito de investigar as relações entre Dança, Terror e Cinema. Tais procedimentos foram guiados por uma série de motivações que tinham como principal intuito desenvolver uma criação artística que, de alguma maneira, provocasse os espectadores a se sentirem incomodados e que esse incomodo estivesse também associado às alegorias políticas propostas pela obra.
No intuído de encaminhar esta escrita para as considerações finais, peço licença para apresentar um último relato que diz respeito a um processo de minha formação acadêmica e artística, que acredito ser importante para pontuar alguns aspectos presentes na escrita desta Dissertação, bem como para apresentar um dos grandes incentivos criativos que me impulsionaram seguir traçando relações entre a dança, o terror e a política.
Nos dois anos em que participei do PET Comunidades Populares Urbanas, tive a possibilidade de vivenciar um projeto encabeçado pela Prof. Dr. Ana Flauzina, chamado Oficina Artigo 148. O artigo 148 do código penal brasileiro, que dava nome a essa oficina, refere-se, fundamentalmente, a “Privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado” (CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, 1941).
Esse projeto fazia parte de um plano de trabalho no qual o nosso grupo era responsável por oferecer, aos alunos de ensino médio, aos alunos do âmbito universitário e à comunidade, oficinas de formação que abordavam questões raciais e de gênero. Nessa oficina, especificamente, iniciávamos o processo de formação por meio de uma performance/jogo que envolvia os membros do PET e estudantes. Os espaços onde as ações se desenvolviam eram, na maioria das vezes, salas de aulas nas quais retirávamos as carteiras do centro para podermos ter um vão livre. A performance desenvolvia-se da seguinte maneira:
A porta voz do grupo, que era Ana Flauzina, solicitava que todas as pessoas participantes se organizassem em uma fila em linha reta onde a distância entre uma pessoa e outra era muito diminuta, fazendo com que elas quase se tocassem. Ela pedia, então, para que todos fechassem os olhos, não se comunicassem e esperassem até que novos comandos fossem determinados. Pouco a pouco, com entonação crescente, ela começava a enunciar um texto com palavras que eram proferidas no seguinte sentido[1]: Eu estou sequestrando vocês, tirando vocês das suas casas e levando para um lugar onde a única coisa que vocês vão poder fazer é trabalhar... Vocês não são mais donos da própria vida, agora vocês pertencem a mim, vocês só fazem o que eu mando e quem não fizer está morto. Sua mãe é minha, seus irmãos são meus, eu faço com eles o que eu quiser. Vocês só vão comer na hora que eu quiser e o que eu quiser que vocês comam. A única coisa que vocês têm direito de fazer é trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar...
Enquanto ela proferia essas palavras, nós, os seus comparsas dentro da performance, éramos responsáveis por caminhar ao redor da fila de pessoas batendo a palma das mãos de forma seca e descompassada também em ordem crescente.
Essa etapa durava alguns minutos e o objetivo era o de promover o desconforto por meio desses estímulos. Então, a porta voz buscava uma entonação incisiva e feroz que atingia o seu ápice com o texto gritado e cada vez mais próximo das pessoas. Nós, os comparsas, por vezes, nos aproximávamos de alguma pessoa na fila e batíamos as palmas das mãos com muita força, até chegarmos ao ápice em que palmas descompassadas e voz berrante se esgotavam até cessar.
Ela, então, sinaliza que os estudantes abrissem os olhos, abria a porta da sala e seguia para a segunda parte da dinâmica: Chegamos no nosso destino, a porta está aberta... vocês podem tentar escapar, mas se eu ou algum dos meus comparsas pegarem você, você está morto...se sair da fila e tentar fugir você está morto.
Nós seguíamos, ao redor da fila, abrindo brechas vez ou outra, para que o caminho até a porta não estivesse completamente monitorado, fazendo os participantes “cativos” acreditarem ter alguma chance de escapar.
Estabelecidas as regras do jogo, as pessoas calculavam suas possibilidades e agiam de acordo com a forma como sentiam que poderiam naquele momento. Uma ou outra conseguia escapar quando a brecha que dávamos era grande demais, e nós não éramos velozes o suficiente para alcançá-la; outras tinham o ímpeto de tentar, mas não chegavam a fazê-lo. Determinadas vezes, certos participantes não ousavam sequer abrir os olhos ou se mover.
A porta-voz, às vezes, provocava os cativos até o ponto de fazer uma proposta: Eles não têm coragem de sair daí, podem deixar a porta vazia (falando para nós, os comparsas) eles têm medo demais para tentar fazer alguma coisa...Eu vou dar uma chance pra quem quiser se dar bem. Se você se unir ao meu bando e for de confiança nós não matamos você, mas você tem que se comprometer a matar os seus que tentarem fugir... (No período em que estive no PET, nunca presenciei alguém que aceitasse essa proposta.)
Por fim, depois de alguns minutos nessa etapa da dinâmica, encerrávamos o jogo, reorganizávamos, nós e as pessoas participantes, as carteiras do espaço, nos sentávamos em círculo e éramos conduzidos para a última parte da performance, na qual cada pessoa teria que proferir apenas uma palavra relacionada ao que estava sentindo depois da dinâmica. Ana Flauzina, então, mediava uma discussão que partia das palavras proferidas e finalizávamos a performance dando abraços uns nos outros.
Antes mesmo da mediação de Ana, palavras que, corriqueiramente, surgiam eram: medo, angústia, raiva, navio-negreiro, prisão, violência, racismo, tortura, impotência, injustiça, e coisas afins.
Os desconfortos gerados pela dinâmica da performance-jogo serviam, então, como propulsores para uma discussão mais aprofundada sobre racismo que se iniciava com a relação entre o que acabava de ser vivenciado ali e o tráfico transatlântico de pessoas negras escravizadas, sequestradas de suas origens e submetidas às mais perversas situações. No entanto, o que diferenciava aquela discussão de outras sobre o mesmo assunto é que, nesse caso, partia de uma experiência em comum que todas as pessoas presentes vivenciaram e assimilaram ao mesmo tempo, uma experiência que, a priori, não tratava, especificamente, de questões raciais, mas que, de diferentes maneiras, suscitava provocações por meio do desconforto psicofísico, das afetações familiares ao terror que estavam sempre presentes nesse jogo.
Trago, aqui, esse relato para iniciar alguns tensionamentos entre aspectos da arte e Terror de Estado no Brasil, pensando, principalmente, nas possibilidades que diferentes tipos de produções artísticas proporcionam ao suscitar afetos e afetações. No caso da Oficina Artigo 148, constatei que havia uma riqueza de associações feitas pelos participantes que se desenvolviam a partir da performance e que eram projetadas com a intenção cuidadosa de provocar o incômodo das pessoas.
Considerando a linha de pensamento, proposta por Teixeira Coelho (2000), de arte como questionadora de nossas certezas estéticas, acredito que o Terror como gênero artístico tem a potencialidade de promover esses questionamentos por se tratar de uma construção cênica que, fundamentalmente, busca tensionar a nossa relação com os conceitos de civilidade, normalidade, ordem, entre outros. Isso não significa dizer que o Terror está isento de reproduzir estereótipos ou padrões normativos, ou que sempre se utilize do incômodo como um instigador de pensamentos críticos. Nem também que outros gêneros artísticos não tenham mecanismos próprios que possibilitem esse caminho, mas me instiga pensar que as bases desse gênero se estruturam na ideia do incomodo como fator indispensável para seu funcionamento.
Da mesma maneira que Ana Flauzina buscava gerar uma experiência suscitadora de incômodos para que, a partir deles, as pessoas se questionassem sobre uma série de condutas sociais estruturantes do racismo, acredito que os fundamentos de construção do Terror, como gênero artístico, que também busco nesta Dissertação e nos fazeres artísticos aqui relatados, possam, de forma semelhante, proporcionar campo fértil de discussões que contribuam para os questionarmos sobre temáticas de opressão.
Tanto essa experiência do grupo PET quanto os processos de formação sobre questões raciais e as visitas que realizávamos no sistema penitenciário Lemos Brito, em Salvador (2019), atravessavam-me de modo a me fazer perceber as diferentes engrenagens aterrorizantes constituintes da estrutura do racismo no Brasil e que se mantêm até hoje com o aval dos órgãos de poder. A ideia do sequestro, proposta por Ana como mote da performance, não remetia apenas aos sequestros transcorridos em um Brasil Colônia, mas aos sequestros intermitentes que seguiram desde então, o que me instiga tentar compreender como meu corpo em movimento pode ajudar a apresentar perspectivas monstruosas que fazem parte dessa história e a questioná-la a ponto de gerar alguma mudança.
No intuito de desenvolver estados de corpo aterrorizantes, usando como alegoria o Terror de Estado no Brasil, foi desenvolvida uma série de procedimentos de criação que partiu do contato com diferentes referências que corroboraram para o entendimento dos mecanismos de produção do terror na relação Dança e Audiovisual. Assim, a entrega deste Mestrado, de profunda pesquisa, me aponta para a busca de experimentar como os processos vivenciados por mim, na maioria dos momentos de forma solitária, poderiam ser compartilhados com outras pessoas no intuito de fomentar diferentes perspectivas de procedimentos de criação em dança em diálogo com a linguagem audiovisual. Tal compartilhamento, além de poder ser proposto por meio de produtos artísticos, ou seja, intervenções cênicas, espetáculos, filmes, dentre outros, poderia ser organizado a partir de processos de criação compartilhada, aulas, oficinas, workshops, nos quais pessoas com suas inquietações artísticas também pudessem desfrutar de um campo fértil de diálogo e trocas para a criação em dança. Instiga-me pensar que tais experiências poderiam estar espelhadas nos princípios presentes nas oficinas Artigo. 148, de Flauzina, em que uma experiência performática vivenciada por um grupo de pessoas pode ser usada como mote de debate e diálogo sobre questões sociais.
Me pergunto, também, como, em um contexto de pessoas não artistas, os princípios de criação aqui apresentados poderiam proporcionar uma diferente abordagem de contato inicial com o fazer da linguagem da dança, do teatro e do audiovisual. Isso, por entender que o estudo das artes associado a debates das formas de elaboração do terror, tanto no âmbito artístico, quanto no âmbito de associação com Estado, pode viabilizar múltiplas discussões associadas aos estudos da arte e da política. Nesse intuito, um dos meus anseios é o de poder, futuramente, encontrar uma maneira de, a partir de uma adaptação dos modos de fazer aqui abordados, poder voltar ao sistema prisional e desenvolver um projeto continuado que aproxime os detentos de linguagens artísticas, ao mesmo tempo que levantasse discussões relativas a questões de raça e gênero.
O contato mais próximo com os procedimentos técnicos e de criação da linguagem audiovisual que essa pesquisa me proporcionou, também me instiga a pensar em seguir aprofundando as discussões aqui propostas, mas atreladas a um contexto de produção compartilhada com outros profissionais da área da dança e do cinema que possam ajudar as expandir as possibilidades criativas e a fomentar as discussões políticas aqui trazidas.
Sendo assim, espero que daqui adiante, essa pesquisa possa provocar outros corpos, e incentivar, formas outras, do fazer e compartilhar artístico.
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[1] As falas descritas nesse relato buscam apresentar a conotação geral do que era dito nos contextos da oficina. Como não havia um texto fixo decorado, mas uma ideia central de falas que se repetiam em cada encontro, opto, então, pela construção que visa apresentar o cerne do que normalmente era dito.